A discussão sobre o culto na Igreja Cristã é tão apaixonante que, na América do Norte, certa vez, recebeu o nome de “Worship Wars” (Batalhas litúrgicas). Nosso perfil brasileiro dificilmente nos faz pensar em guerra ou batalha, mas, igualmente, de tempos em tempos nos vemos em meio a conversas, discussões, concordâncias e discordâncias a respeito do culto cristão como praticado pela Igreja Luterana.
Ao longo de dois milênios, o culto cristão já foi celebrado em casas, catacumbas, palácios, mosteiros, catedrais, templos, auditórios, ginásios e embaixo de árvores. Já foi conduzido com roupas de dia a dia, com vestes talares, com togas de magistrado e roupas casuais. Já teve canto a capella, microfone, instrumentos acústicos, órgão de tubos, instrumentos elétricos, corais, bandas, grupos de canto e vocal uníssono. Já privilegiou preparação tanto lógica e de raciocínio intelectual como manifestações de emoção e improviso. Já teve três grandes linhas de tradição distintas– europeia, africana e asiática, sendo que a europeia foi a que prevaleceu e chegou ao continente americano.
O próprio jeito de ser comunidade já passou por diversos formatos, estruturas, políticas administrativas e visões missionárias, conforme a época, realidade, cultura e dificuldades que a Igreja enfrentou.
Para auxiliar no debate e para evitar mera divisão e ressentimento dentro de nossa comunidade em função de gostos, preferências e estilos, estes dez tópicos podem ser úteis.
1. Não existe uma forma única de culto válida
A validade é definida pela Palavra e pela essência, não por uma época, cultura ou preferência específica. Segundo a máxima teológica lexorandi lexcredendi (aquilo que se faz é aquilo que se crê), a prática cúltica precisa ser reflexo do que se crê, não necessariamente das formas que sempre foram usadas.
Martinho Lutero: “Tenhamos todos os mesmos pensamentos e sentimentos, ainda que o modelo de proceder seja diverso. Aceitemos os ritos uns dos outros para não acontecer que, por causa da diversidade de ritos, resultem crenças ou seitas diversas, Porque ritos exteriores, ainda que não possamos dispensá-los, tampouco como podemos prescindir de comida e bebida, não nos recomendam a Deus, assim como o alimento não nos recomenda a Deus (1Co8.8). O que nos recomenda a Deus é a fé e o amor. Por isso, reine aqui a palavra de Paulo: “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Assim, o reino de Deus não consiste em qualquer rito, mas em fé dentro de vós” (Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero,SBB, p.1111).
2. A essência do culto cristão luterano é Palavra e Sacramentos
O artigo 7º da Confissão de Augsburgo define: ”E para a verdadeira unidade da igreja basta que haja acordo quanto à doutrina do evangelho e à administração dos sacramentos. Não é necessário que as tradições humanas ou os ritos e cerimônias instituídos pelos homens sejam semelhantes em toda a parte” (tradução latina – Livro de Concórdia – p. 66).
3. O nome do culto realmente não importa
Culto tradicional, culto contemporâneo, culto jovem, culto da família, culto de louvor e adoração… Nenhum desses nomes tem qualquer influência sobre a validade e o conteúdo do culto. Em vários contextos, sem dúvida, o nome ajuda as pessoas a identificarem o estilo, a forma ou o direcionamento específico de uma celebração – como quando denominamos “culto especial de gratidão pelo aniversário da comunidade da graça”. Mas é apenas uma identificação. Se for necessário dar um nome definitivo para o culto que praticamos, um dos mais adequados seria culto cristão luterano.
4. Cultos diferentes e diferentes cultos existem porque as pessoas, os contextos e as necessidades são diferentes
A Grande Comissão de Cristo foi de fazermos discípulos, batizar e ensinar. Ou seja: saímos a campo e compartilharmos o Evangelho, anunciando que, para serem salvas, as pessoas precisam de Cristo. Muitos são tocados pelo Espírito Santo e passam a crer na Palavra. A partir daí, são convidados, também, a congregar, pois é mandamento bíblico e necessidade cristã, por causa da Palavra e dos sacramentos. A dedução mais comum sobre a causa maior, talvez única, de alguém não frequentar os cultos é o descaso com a Palavra e a frieza espiritual.
Então, quando as pessoas querem ir à igreja cultuar a Deus, anunciamos: “Bem-vindos. Mas o jeito de cultuar a Deus é este”. Uma pergunta é inevitável: seria possível que uma única liturgia, um único jeito de celebrar o culto a Deus fosse adequado para todos os milhões de brasileiros?
“Sim, mas o culto não foi feito para agradar as pessoas, e sim, para Deus. Se as pessoas não gostam, deve ser porque estamos certos, é o Evangelho escandalizando o coração humano“. Esta é uma das alternativas. Há outras. Por exemplo, a de que o Evangelho tenha feito seu trabalho – tanto que as pessoas querem vir à igreja, sabem que necessitam da Palavra e dos sacramentos. Mas, como pessoas são diferentes, com necessidades e visões diferentes, é difícil que um mesmo e único tipo de condução cúltica e jeito de ser comunidade seja adequada a todos. E, por fim, muitas pessoas não encontram seu espaço naquele modelo único de culto e comunidade.
Como escreveu um autor cristão: ”A única coisa que deveria escandalizar uma pessoa no culto deveria ser o Evangelho”. Todo o resto deveria ser trabalhado para que as pessoas que estão sendo chamadas pelo Evangelho sejam integradas, dentro do possível, ao culto, e todos compartilhem da vida plural que, naturalmente, existirá em uma comunidade plural.
5. Conhecer o que outras comunidades fazem também auxilia no crescimento, aprimoramento e solidificação do trabalho local
Uma vez que não conseguimos, com o nosso jeito, ou nossos jeitos, atingir com a Palavra o universo de pessoas à nossa volta, é normal que haja outras comunidades e/ou denominações que o façam. Além disso, em vez de observar apenas o que é feito de inadequado ou equivocado em outros lugares, podemos observar, avaliar e, em alguns casos, até mesmo “copiar e colar” ideias boas, significativas e edificantes para o culto e o trabalho em comunidade.
6. Contextualizar a Igreja não significa, automaticamente, abandonar a liturgia tradicional
Preferir a liturgia tradicional não significa ser ultrapassado, avesso a inovações ou ao avanço da Igreja. No esforço pela inovação ou diferenciação litúrgica – sempre preservando Palavra e sacramentos – em alguns momentos, corre-se o risco de esquecer que as pessoas têm diferentes gostos e preferências que devem ser respeitados, também no que se refere à liturgia tradicional.
Ao falar em alternativas litúrgicas, não deveríamos pensar em “ou”. Ou você é desta, ou você é daquela. É proveitoso pensarmos em “e”. Podemos ter esta forma litúrgica e também aquela(s). Quando se trata de forma (não a essência) de culto, nem sempre existe certo ou errado; mas existe o que é adequado ao contexto e o que não é.
Não podemos esquecer: o tradicional de hoje foi contemporâneo ontem. E o contemporâneo de hoje será tradicional amanhã.
7. Os cultos diferentes da liturgia tradicional não podem existir somente para que haja constante novidade e atratividade no culto
Todo culto acaba sendo, mais dia, menos dia, tradicional. A leitura constante que precisamos fazer é que tipo de comunidade ou congregação é necessária para determinado contexto. Todo culto acaba tendo uma rotina, por isso, o objetivo de um culto jamais pode ser ”a atratividade” ou “ a novidade”. Tudo envelhece.
O objetivo do culto precisa ser estar centrado em Palavra e Sacramentos e conectar pessoas a Deus e umas com as outras, dentro da realidade que se está inserido. Se um modelo não funciona mais, não é pecado repensá-lo.
Uma das ilustrações utilizadas pelo prof. James Tino, no curso de missão urbana no Seminário Concórdia, em fevereiro de 2015, sobre o jeito de ser comunidade no mundo, foi a comparação com uma ameba. Como ela, temos um núcleo que é imutável. No restante, podemos, e até precisamos, amoldar-nos às situações e necessidades do povo a quem queremos alcançar com o Evangelho.
8. A Igreja estar conectada ao seu tempo não diz respeito apenas a “incrementar os cultos”
Isso costuma apenas gerar desgaste, discussão e, talvez, afastamento, uma vez que se mexe com gostos, preferências e raízes emocionais.
No entanto, mais do que cultos diferentes, precisamos pensar no jeito de ser congregação. Recordar que não há um modelo de Igreja que possa permanecer como única alternativa para todas as situações. Somos chamados a distribuir a água, e não apenas a guardar a fonte.
Como exemplo prático, podemos pensar sobre quanto tempo da agenda um pastor pode, quer ou consegue dedicar para atividades que não sejam atendimentos aos membros e às atividades da comunidade? Em que medida, tanto ele como os membros, envolvem-se em atividades da cidade, em novas missões, em contatos evangelísticos? É importante que todos nós, cristãos, membros de uma congregação, sejamos relembrados de que a fé é vivida na vida diária. Compreendamos que, tão ou mais importante do que participar todas as semanas de um departamento, comissão ou atividade da comunidade – normalmente, entre nós mesmos, membros – é viver a fé na vida diária, a partir do culto divino, estabelecendo conexões com pessoas não-cristãs, amigas ou não. Para que ali, no cotidiano, sejam espelhos de Cristo, compartilhando a fé em Jesus, levando a salvação para mais pessoas. Mesmo que estas não se tornem membros oficiais da congregação.
9. Não existe culto sem emoção
Emoção no culto não é apenas viável. É indispensável. Um culto desprovido dela não seria humano, já que somos seres emocionais também.
Até mesmo o mais tradicional dos frequentadores, quando for convidado a lembrar de cultos marcantes, momentos inesquecíveis diante de Deus, provavelmente vai se lembrar daqueles que mais carga emocional tiveram. Seja pelo lado bom, – confirmação do filho, batizado da neta, celebração de aniversário, início de uma nova missão – como, também, negativo – a irritação com um culto mal conduzido, o dia em que um irmão o chateou, quando a banda ou o organista tocou com o volume muito alto ou quando o coral cantou afinado quase nenhuma linha.