*Clóvis Jair Prunzel
Professor no Seminário e Faculdade Luterana Concórdia
Paraninfo – Formados 2025
Jesus e João Batista
“22Depois disso, Jesus foi com os seus discípulos para a terra da Judeia; ali permaneceu com eles e batizava. 23Ora, João também estava batizando em Enom, perto de Salim, porque ali havia muitas águas, e o povo se dirigia para lá e era batizado. 24Pois João ainda não havia sido preso.
25Então surgiu uma discussão entre os discípulos de João e um judeu a respeito da purificação. 26E foram até João e lhe disseram:
— Mestre, aquele que estava com o senhor no outro lado do Jordão, do qual o senhor deu testemunho, está batizando, e todos vão até ele.
27João respondeu:
— Ninguém pode receber coisa alguma se não lhe for dada do céu. 28Vocês mesmos são testemunhas de que eu disse: “Eu não sou o Cristo, mas fui enviado como o seu precursor.” 29O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está presente e o escuta se alegra muito por causa da voz do noivo. Pois essa alegria já se cumpriu em mim. 30Convém que ele cresça e que eu diminua.” (João 3.22-30)
INTRODUÇÃO
Mensagem de Formatura
O ano de 2025 é especial para toda a cristandade: celebramos 1700 anos do Concílio de Niceia, ocasião em que a Igreja, reunida sob a Palavra de Deus, confessou com clareza e coragem a verdade sobre quem é Jesus Cristo — verdadeiro Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Essa confissão histórica, conhecida por nós hoje como o Credo Niceno, permanece viva na boca e no coração da Igreja, e continua moldando o nosso testemunho.
Não por acaso, essa confissão tem profunda conexão com o Evangelho segundo João. É ali que encontramos, com singular beleza e profundidade, a revelação de Jesus como o Verbo Eterno, enviado pelo Pai, feito carne para habitar entre nós, e que nos dá o Espírito da Verdade. A doutrina trinitária e a fé cristológica que celebramos em Niceia são, na verdade, o eco fiel das palavras de João.
Queridos formandos, hoje vocês são reconhecidos como teólogos luteranos confessionais. Ao longo desses anos de formação, vocês foram conduzidos à fonte — à Palavra de Deus — e alimentados com a doutrina pura, conforme os símbolos da nossa Igreja Luterana que confessa o Credo Niceno e testemunha o mesmo que o evangelista João escreveu. Seu ofício é, desde já, participar desse testemunho vivo que proclama ao mundo quem é o nosso Senhor: Jesus Cristo, o Filho de Deus, Salvador.
A escolha do Evangelho de João como texto desta formatura não é coincidência. Ela aponta para dois momentos que se entrelaçam: o marco histórico do Concílio de Niceia e o encerramento de uma caminhada teológica que agora se transforma em serviço ministerial. E ambos os momentos nos mostram aquilo que o evangelista João e João Batista nos mostram: o Deus eterno (ontologicamente), que se fez próximo de nós (economicamente), assumindo nossa carne, habitando conosco, e salvando-nos pela cruz e ressurreição.
Por isso, neste dia festivo, as palavras que saíram da boca de João Batista são as as nossas palavras ainda hoje: “Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3.30).
Essa afirmação não é apenas um versículo bíblico, mas uma direção para a vida ministerial de vocês, formandos. O ministério que vocês recebem hoje não é sobre vocês, mas sobre Cristo. É por Ele, para Ele e com Ele. Por isso, queremos destacar ao longo desta mensagem: 1. que o ministério de vocês aponte sempre para aquele que é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; 2. que a pregação e o ensino de vocês façam Cristo crescer nos corações das pessoas a quem vocês irão servir; e 3. que a noiva de Cristo, a sua igreja, receba todo o cuidado através do ofício ministerial de vocês.
PRIMEIRA PARTE
O Ministério de Jesus e João Batista (Jo 3.22–24)
Queridos formandos, irmãos e irmãs em Cristo Jesus:
O texto de João 3 nos conduz a um momento significativo na narrativa do Evangelho: Jesus e João Batista estão simultaneamente em atividade, batizando, ensinando, reunindo discípulos. O evangelista faz questão de registrar: “João ainda não tinha sido preso” (v.24). Isso não é detalhe acidental. É proposital. Há aqui uma intenção teológica: mostrar que, por um tempo, os ministérios de Jesus e João ocorrem lado a lado, ainda que em planos distintos.
De um lado, Jesus, o Filho enviado pelo Pai, está ativo no mundo. Nos capítulos anteriores ao três, o vemos Jesus presente em um casamento, chamando discípulos, subindo a Jerusalém, e — vejam só — ensinando com autoridade divina: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito…” (Jo 3.16).
Jesus está revelando o coração do Pai. Ele não é um mestre entre outros. Ele é o Verbo encarnado, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Do outro lado, João Batista. Ele também batiza. Ele também tem discípulos. Ele também ensina. Mas há algo fundamental em sua postura. João não é confundido quanto à sua identidade. Ele sabe: não é o Cristo. Seu ministério é de transição, de testemunho. Ele é o amigo do Noivo, a voz que clama no deserto, o dedo que aponta o Salvador.
E aqui, queridos formandos, aprendemos algo essencial para o ministério pastoral. O evangelista João não apressa a saída de cena de João Batista. Ele não diz: “João já cumpriu sua parte, pode ir embora.” Pelo contrário, ele preserva o tempo de sobreposição para destacar que João Batista permanece fiel até o fim — até que Cristo cresça e ele, conscientemente, diminua.
Esse é o modelo para vocês. O ministério que vocês assumem é, por natureza, transitório. Ele não aponta para vocês, mas para Cristo. O povo que vocês servirão não é sua conquista, mas o rebanho do Bom Pastor. A Igreja não é sua noiva — ela pertence a Cristo. E o vosso papel será como o de João: preparar, anunciar, conduzir e, se necessário, desaparecer.
João Batista confessou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.” (Jo 1.29) Essa também será a vossa pregação, culto após culto, estudo após estudo, visita após visita.
O fim de João Batista foi trágico aos olhos humanos: preso por falar a verdade, decapitado por não recuar diante do pecado. Mas aos olhos de Deus, foi glorioso: fiel até o fim, humilde diante do Cristo, exemplo de ministério profético e pastoral.
Formandos, que o vosso ministério seja moldado por essa mesma convicção: Deus tem a história nas mãos. E vocês têm nas mãos a Palavra que anuncia Cristo. A segurança de João Batista era essa. A de vocês também será. Pois, “Convém que Ele cresça, e que eu diminua.” Essa não é uma perda para vocês. É um privilégio. É a alegria do amigo do Noivo. É a glória do servo de Cristo.
SEGUNDA PARTE
O Tema do Ministério (João 3.25)
Queridos formandos e irmãos em Cristo:
Vocês se lembram do início da caminhada aqui no Seminário Concórdia. As primeiras aulas, a adaptação à vida acadêmica, o convívio comunitário. Lembram da surpresa da quarentena, do isolamento repentino, do esforço de manter os estudos e a comunhão mesmo separados fisicamente? E ainda que vocês não estivessem no campus durante a enchente do ano passado, também partilharam conosco o peso desse tempo. Tudo isso faz parte da história de vocês.
Mas, como bem sabemos, nossas aulas não foram sobre pandemia, nem sobre enchentes. Foram sobre Cristo. Foram sobre o Deus Triúno que age por meio da Palavra e dos Sacramentos. Foram sobre o Evangelho que purifica, regenera, consola. E é exatamente sobre isso que o texto de João 3 também trata.
Ali, antes mesmo de ouvirmos João Batista novamente, há uma conversa — uma discussão, na verdade — entre os discípulos de João e um judeu não identificado. O tema? Purificação. É esse o assunto que serve de ponte entre o batismo de João e o ministério de Jesus. E, ao tratar disso, o evangelista João nos conduz a uma compreensão mais profunda da missão de ambos.
A palavra “purificação” aparece de modo muito estratégico no evangelho. Ela já tinha sido usada em João 2, no relato do casamento em Caná. Lembram? As talhas de pedra, destinadas à purificação ritual dos judeus, foram usadas por Jesus para realizar o milagre do vinho — o melhor vinho é a alegria da presença de Jesus e a antecipação do seu sangue derramado.
Assim, o evangelista liga o milagre de Caná ao tema da purificação que vem por meio de Cristo. Ele conecta as águas da antiga aliança ao vinho novo da nova aliança. E agora, em João 3, esse mesmo evangelista conecta o batismo de João à obra purificadora de Jesus. Ele está nos mostrando algo essencial: o que Jesus oferece não é apenas um rito, mas o dom do Espírito Santo — e com Ele, a purificação completa do pecado.
Queridos formandos, vocês foram chamados para ministrar esse dom — não como donos, mas como servos. O batismo que vocês administrarão é de Jesus. A purificação que ele concede vem pela Palavra e pelo Espírito. O perdão que vocês anunciarão não é mérito de vocês, mas fruto da cruz de Cristo.
E isso nos conduz de volta ao lema escolhido: “Convém que Ele cresça e que eu diminua.”
Esse crescimento de Cristo não é sobre prestígio ou visibilidade, mas sobre o agir eficaz do Evangelho. Que Ele cresça — no coração dos ouvintes, no dom da fé dos que creem, na vida dos batizados, na comunhão dos que recebem o Sacramento da Ceia. E que nós diminuamos — em vaidade, em orgulho, em protagonismo. Que o ministério de vocês seja, como o de João Batista, um ministério que aponta para o Cordeiro de Deus.
Assim como João, vocês ensinarão sobre purificação. Mas não baseada em tradições humanas, nem em religiosidade vazia. Ensinarão que há um Deus que lava, que renova, que salva. Ensinarão que o sangue de Cristo nos purifica de todo pecado (1Jo 1.7). E conduzirão a Igreja, a Noiva, a essa água viva.
Formandos, o ministério de vocês terá muitos desafios. Mas enquanto Cristo crescer, e vocês se colocarem à sombra da cruz, o Evangelho brilhará. E nisso, nossa alegria se completa.
TERCEIRA PARTE
“Aquele que tem a noiva é o noivo” — Nosso ministério e a alegria do amigo (João 3.26–36)
Queridos formandos e irmãos e irmãs reunidos aqui:
No encerramento do texto do evangelho, ouvimos a última fala de João Batista no Evangelho de João. E que fala! É um testemunho profundo, cheio de humildade, sabedoria e clareza do seu ofício. Seus discípulos vêm inquietos: “Mestre, aquele de quem tu deste testemunho agora está batizando, e todos vão ter com ele!” (Jo 3.26). Em outras palavras: “João, ele está crescendo… e você está sumindo”.
E João Batista responde com uma serenidade que somente quem conhece seu lugar diante de Cristo pode ter. João Batista afirma:
“O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada” (v.27).
“Eu não sou o Cristo” (v.28).
“Aquele que tem a noiva é o noivo. O amigo do noivo, que está presente e o ouve, muito se alegra com a voz do noivo. Esta, pois, é a minha alegria, e ela está completa” (v.29).
“Convém que ele cresça, e que eu diminua” (v.30).
Queridos formandos,
que essas palavras sejam impressas no coração de vocês.
João Batista nos ensina o verdadeiro espírito do ministério: nós não somos o centro. Cristo é. Nós não temos a noiva. Cristo tem. Nós não damos os dons da salvação. Cristo dá. Nosso papel — e que privilégio é esse! — é ser o amigo do noivo. O que conduz a noiva até o Noivo. O que prepara o povo para Cristo. O que se alegra ao ouvir a sua voz.
No mundo antigo, o amigo do noivo era uma figura de honra, mas com um limite: ele não podia, de forma alguma, tomar a noiva para si. Seu trabalho era cuidar, guardar, acompanhar e, finalmente, conduzir. Quando o noivo chegava, sua missão se completava. E sua alegria se cumpria.
Essa é a alegria do ministério pastoral. Ver Cristo sendo formado nos corações. Ver a Igreja sendo purificada, alimentada, consolada pela Palavra e pelos Sacramentos. Ver o Noivo tomando a Noiva em seus braços eternos. E nós? Diminuímos. E nos alegramos com isso.
O evangelista João, com maestria literária e teológica, une neste trecho as imagens do Batismo, da purificação e do casamento — todas apontando para a obra escatológica de Cristo. A purificação dos pecados, prefigurada em Caná e retomada aqui, culmina na realidade do Batismo cristão, onde Cristo, o Noivo, sela seu compromisso com a Igreja. E a Igreja, sua Noiva, é purificada e adornada com o Espírito Santo.
Essa é a realidade que João Batista proclama e que agora é confiada a vocês: proclamar o Noivo. Preparar a Noiva. Servir com humildade. Testemunhar com fidelidade. Alegrar-se com o crescimento de Cristo.
E como termina a fala de João? Com uma nota doutrinária tão densa quanto sublime:
“O Pai ama o Filho e entregou todas as coisas em suas mãos. Quem crê no Filho tem a vida eterna; quem, porém, se mantém rebelde contra o Filho, não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3.35–36).
Aqui está o centro da pregação cristã. Cristo é o Filho amado. Ele recebeu tudo das mãos do Pai. Nele está a vida. Fora d’Ele, não há salvação. Essa é a mensagem que vocês pregarão. Esse é o testemunho que carregam assim como o fazemos no Credo Niceno.
E por isso, formandos, repitam com João — com convicção, com alegria, com fé:
“Convém que Ele cresça, e que eu diminua.”
Porque:
– Só Ele tem a Noiva.
– Só Ele dá o Espírito sem medida.
– Só Ele tira o pecado do mundo.
– Só Ele conduz a Igreja à glória eterna.
E vocês? São amigos do Noivo. Servos da Palavra. Pastores do rebanho. Chamados para conduzir, não dominar. Para alegrar-se, não competir. Para testemunhar, não substituir.
Essa é a alegria do ministério. Essa é a marca do pastor fiel. Esse é o espírito da Igreja que confessa: Creio em Jesus Cristo. “Convém que Ele cresça.”
CONCLUSÃO
“Convém que Ele cresça, e que eu diminua.” João 3.30
Querida igreja,
amados irmãos e irmãs, prezados formandos:
O testemunho de João Batista — humilde, fiel e confessional — não ecoa sozinho na história. Ele foi assumido pela Igreja ao longo dos séculos, expressado nos Credos Ecumênicos, de forma especial no Credo Niceno, proclamado pelos fiéis, sustentado pela liturgia e confessado pela boca dos pastores chamados por Deus.
Hoje, ao celebrarmos a formatura de mais uma turma de teólogos luteranos confessionais, esse mesmo testemunho se renova. Vocês, queridos formandos, foram preparados para dizer com João: “Eu não sou o Cristo. Mas fui enviado adiante d’Ele.” E para confessar com toda a Igreja: “Convém que Ele cresça, e que eu diminua.”
Esta é a nossa confissão de fé. E por quê?
- Porque Deus nos chama a servi-Lo, caminhando ao lado de Cristo, nunca em lugar d’Ele. Sim, o Espírito de Cristo, o Espírito Santo, acompanhará o ministério de vocês.
- Porque só o ministério de Cristo purifica, salva e edifica a Igreja.
- Porque somos amigos do Noivo, conduzindo com alegria a Noiva — a Igreja — ao seu legítimo Senhor.
Essa confissão resume o mistério da Trindade revelado nas Escrituras e proclamado nos Credos da Igreja. Ela molda o ministério pastoral: um serviço onde o centro nunca é o pastor, mas o Cristo. Um serviço em que a glória nunca é nossa, mas sempre d’Ele.
Vocês foram formados, não apenas para falar sobre Deus, mas para conduzir o povo de Deus ao encontro com o Noivo — com reverência, com fidelidade e com alegria. Essa palavra final do Batista se torna, hoje, a primeira palavra do ministério de vocês. Ela define quem somos como Igreja, como ministros da Palavra, como discípulos de Jesus.
Por isso, formandos, igreja, seminário, povo de Deus: Unamos nossas vozes e nossos corações na mesma confissão — simples, profunda e eterna – com a de João Batista:
“Convém que Ele cresça, e que eu diminua.” Amém.
*Mensagem proferida no culto de Ação de Graças e solenidade de Formatura dos alunos de teologia e diaconia, do Seminário e Faculdade Luterana Concórdia, em 06 de dezembro de 2025.


