Na edição de abril do Mensageiro Luterano, p.11, apresentei o conceito linguístico-filosófico da “voz média”. Aqui retomo o tema, com base no artigo que publiquei em coautoria com Jean Lauand: “Josef Pieper e C. S. Lewis: metodologia, linguagem e amor” (Convenit Internacional, n.12, Cemoroc Feusp, 2013).
A voz média, no grego e no latim, expressa ações que, sendo minhas, não são minhas, mas fortemente dependentes da interação com o outro (e o Outro: Deus) e a criação; o que nos faz abdicar da “arrogância do protagonismo”, como no maravilhoso verso de “Timoneiro”, de Paulinho da Viola: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar…”.
Admirar-se, apaixonar-se, esquecer-se, são exemplos dessas ações, que nossa forma reflexiva não chega a expressar com a força da voz média do grego ou do latim.
Quando pensamos em educar para o amor, temos que ter em conta que educar e amar não são totalmente ativos: educação, de educere, “eduzir” (conduzir para fora), afinal, não é colocar algo em um sujeito nem abandoná-lo a si mesmo, mas dar condições ao educando (num processo que não separe educador de educando: educação é sempre comunhão…) de extrair de si…
Em estudo anterior desta série, fazíamos notar que a língua alemã, com sua palavra Liebe, cumulativa de todas as formas de amor, permite visualizar o que há de comum no amor (a aprovação do que se ama); já o latim (e as línguas latinas) é mais apto a captar o variado leque dos aspectos, por vezes “contraditórios”, do amor.
Por mais que pensemos que se trata de voz ativa (“Eu amo, tu amas, etc.”), o amor envolve os passivos: affectio e passio. Daí seu caráter enigmático, magistralmente expresso por Camões: “[Amor é] Hum não sei que, que nasce não sei onde; Vem não sei como; e doe [dói] não sei porque”.
Somos afetados (“afeição”) pela paixão que – à margem de nossa vontade – nos é como que imposta: no amor não somos exclusiva nem primariamente ativos. Não por acaso, apaixonar-se, em inglês, é cair: “fall in love”. Mas, por outro lado, o amor (dilectio), sim, é, escolha ativa, e já estamos de novo envoltos na voz média.
É tarefa urgente da educação (e da educação cristã) resgatar humildemente o espírito da voz média, algo conatural para o mundo clássico – grego e latino – e para as tradições orientais, que bem sabem que é uma ilusão a pretensão de total protagonismo e controle, da dominação da voz ativa em nossa própria vida. Na verdade, navegamos e somos navegados…
Devemos ajudar nossos educandos a reconhecer esse co-protagonismo e abrir-se ao outro, ao mundo e à intervenção de Deus em nossas vidas e decisões.
Um primeiro passo nesse sentido é precisamente dar a conhecer a importância da voz média no humano e – voltando a Ortega y Gasset – ao co-protagonismo: “Eu sou eu e minha circunstância; e se não a salvo, não me salvo eu”.
Vacinados contra a falsidade da “onipotência” da vontade ativa do eu, evitam-se muitas frustrações desnecessárias e arrogâncias narcisistas, com a porta aberta à empatia, ao acolhimento, à afirmação do outro; afinal, a forma fundamental do amor…
E teremos, na espiritualidade cristã, a única base do relacionamento com Deus, como diz Paulinho da Viola no mesmo profundíssimo samba: “Timoneiro nunca fui/Que eu não sou de velejar/O leme da minha vida/Deus é quem faz governar”. Ou, nos versos de Adélia Prado: “De vez em quando Deus me tira a poesia/Olho pedra, vejo pedra mesmo”.
“Eu plantei, Apolo regou, mas é Deus quem faz crescer” (1Co 3.6).