Quaresma: um guia para iniciantes e desavisados

Pastor César Motta Rios
Miguel Pereira, RJ

Para que serve?

Que a Quaresma tem quarenta dias todo mundo deve saber. São quarenta dias entre a quarta-feira de cinzas e a Páscoa, sem contar os domingos. (Afinal, os domingos são dias de se celebrar especialmente a ressurreição de Cristo, não sendo próprios para jejum, por exemplo.)

Nesse período, a cor litúrgica usada nas igrejas é o roxo, que lembra o arrependimento. A Quaresma é tempo oportuno para nos lembrarmos atentamente da necessidade de nos arrependermos de nossos pecados e procurarmos correção para nossa vida. É tempo, também, de praticarmos aquilo que sabemos que deve fazer parte do nosso dia a dia: caridade e oração.

Além do mais, para vivermos tudo isso, precisamos obviamente reconsiderar nossa relação com nossos próprios desejos e vontades. Se vivermos para saciarmos todas as nossas inclinações, se essa for a nossa meta, é certo que o serviço, o testemunho, as boas obras não serão foco de nosso interesse. Estaremos por demais ocupados com a busca de nosso conforto e satisfação. Então, para exercitar uma mudança de foco nesse sentido, é importante também na Quaresma a prática do jejum.

Não há uma regra única para o jejum. Ele pode variar de pessoa a pessoa. Contudo, sempre envolve dizer um não para si mesmo, abstendo-se por um tempo de algo que agrada. Não se ganha nada em troca do jejum, mas se exercita a disciplina para a vida cristã, que não é autocentrada.

É algo obrigatório?

Não é. E digo isso sobre jejum e sobre toda a observância da Quaresma como um todo. Trata-se de uma tradição que se desenvolveu na Igreja. Não há mandamento de Deus mesmo para que esse período fosse constituído e ganhasse as práticas que tem. Portanto, dizemos que não é culto necessário.

Isso quer dizer que ninguém deixa de ser cristão ou se torna um cristão pior por não se envolver de modo próximo e intenso com os costumes próprios da Quaresma.

Ou melhor, para evitar confusão é bom dizer que, sim, as pessoas cristãs devem praticar aquilo que se pratica na Quaresma. Só não é necessário fazer isso especificamente ou mais intensamente na Quaresma.

Não é errado seguir tradições de homens?

Não é, desde que essas tradições não prejudiquem a pregação do Evangelho ou diminuam a glória de Cristo. No caso da Quaresma, temos Cristo como centro das atenções a todo tempo. Além disso, ouvimos o Evangelho em meio às nossas reflexões sobre o pecado que cometemos. É justamente por podermos ouvir o Evangelho que nos dedicamos à meditação sobre nossa condição. Se fosse diferente, esse exercício seria mórbido e infrutífero.

Há, sim, aqueles que pensam que não deveríamos ter qualquer prática não ordenada por Deus no Novo Testamento. Trata-se de um radicalismo estéril e limitante. A bem da verdade, ninguém o segue à risca. No culto do Novo Testamento, não temos notícia sobre cadeiras ou bancos para as pessoas se sentarem durante a pregação ou outras partes da reunião. Por que haveríamos de ter esse recurso em nossas igrejas? Não seria ir além do ordenado? No Novo Testamento, não se fala em Escola Bíblica infantil na congregação. Essa prática das igrejas em geral afronta a sabedoria divina, como querendo melhorar o que ele deixou? No Novo Testamento, não temos menção a instrumentos musicais nos cultos, à formação de departamentos, à oferta de cursos específicos, à leitura e produção de Teologias Sistemáticas… Será que, afinal de contas, escrever ou ler uma obra de Teologia Sistemática significa dizer a Deus que ele devia ter sido mais sistemático na produção das Escrituras?

Obviamente, há certa dose de ironia no parágrafo anterior. O que quero mostrar é que não há como ficarmos restritos ao ordenado no Novo Testamento, sem deixarmos de lado coisas e ações edificantes.

O mais sensato, portanto, é entendermos que podemos fazer uso de recursos novos, de práticas sadias e cristãs, a partir da sabedoria que Deus nos dá, sem que essas coisas conflitem com a Palavra de Deus.

Assim, a Palavra de Deus permanece como critério para avaliação de toda e qualquer tradição e prática, sem que precisemos tolher as pessoas e comunidades a todo tempo, com um fardo que não lhes cabe.

Aliás, então, assim como a Quaresma não é obrigatória, não é obrigatório ignorá-la. Isso não é ordenado, também.

Como isso funciona na Igreja Luterana?

Nós, luteranos, aproveitamos a Quaresma por seu potencial didático, pela edificação que pode trazer para a vida inteira.

Não impomos práticas e costumes às pessoas. Não criamos regras definidas sobre como deve ser o jejum. Não confundimos nada do que fazemos com culto necessário. Contudo, incentivamos as pessoas a se valerem desse bom recurso.

Além disso, valorizamos muito as reflexões próprias desse tempo. Mesmo aqueles que não se dedicam de forma mais intensa às práticas da Quaresma encontram nos cultos uma Palavra que os conduz a reflexões especialmente proveitosas para a vida de arrependimento, para a caminhada com Cristo.

A Quaresma termina na Páscoa e acabou a necessidade de arrependimento, caridade, oração e jejum?

Não é essa a proposta. Como eu disse, é importante o aspecto didático da Quaresma. Nós nos atentamos especialmente para esses assuntos e práticas do período, não no sentido de nos esquecermos delas em seguida. Pelo contrário, o propósito é que saiamos de cada Quaresma mais dedicados a tudo aquilo no decorrer de todo o ano, e de todos os anos que vivermos adiante.

Ainda tem dúvidas?

Nesse caso, fale com o pastor. Aliás, mesmo sem ter dúvidas, pode ser bom falar com o pastor. A Quaresma pode ser um bom período para uma conversa em busca de direção espiritual ou mesmo para confissão/absolvição privada. Durante suas leituras e meditações, surgiu um incômodo quanto ao pecado praticado? Pode ser muito bom para você conversar sobre isso com o seu pastor e ouvir dele a palavra do perdão. É muito bom lembrar que temos no pastor não um juiz pronto a nos condenar, mas um ministro do misericordioso Jesus, que tem o dever da confidencialidade (não vai contar para ninguém o que você lhe contar) e a disposição de te ajudar.

A Quaresma não é um fardo. É uma bênção.

Aproveitemos!

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