O racismo e a violência sempre andaram de mãos dadas. Hoje, as truculências deste casal pervertido estão sendo expostas ao mundo inteiro. E ainda bem. Mas e quando o racismo se une num relacionamento oculto? Por exemplo, um negro que busca emprego, qual a chance de conseguir? A pesquisa “Percepções sobre desigualdades no Brasil de 2019” constatou que, para 72% da população brasileira, a cor da pele define as chances de contratação por parte das empresas. E qual a expectativa de pessoas negras escaparem com vida no meio da violência urbana? A mesma pesquisa diz que para 81%, a raça define o nível de abordagem policial. Ou seja, a cor da pele ajuda ou atrapalha na hora que policiais violentos usam o seu “joelho” opressor com suas armas para impor respeito.
Nos últimos dias, o tema da discriminação racial tomou conta nas discussões, motivado pela brutalidade policial nos Estados Unidos e também no Brasil, cenas chocantes divulgadas na mídia. A crueldade contra George Floyd, com suas últimas palavras, “eu preciso respirar”, gerou grandes protestos contra o racismo, isso num país que ostenta com orgulho sua democracia, mas que sempre enfrentou enormes dificuldades no artigo “todos são iguais perante a lei”. Se a incoerência é gritante, a forma como Floyd foi morto chama a atenção. Enquanto o mundo corria desesperadamente atrás de respiradores mecânicos para salvar vidas, um homem da lei se unia ao vírus, sufocava um indefeso e tirava dele o sopro da vida. No Brasil não faltam histórias de jovens negros assassinados por policiais, a exemplo do menino carioca João Pedro, assassinado dentro do próprio lar na mesma época da morte de Floyd. No ano passado, 75% das pessoas mortas pela polícia brasileira eram negras. Isso confirma um dado injusto: jovens negros em nosso país têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos, amarelos e indígenas. Tem razão cruel a piada de mau gosto, que um branco correndo está fazendo exercício físico, um negro correndo está fugindo da polícia.
O racismo é uma moléstia da sociedade que infecta todos os ambientes. Até nos campos de futebol é comum as pessoas de origem africana e craques da bola serem chamadas de macacos. E nos nossos ambientes? Sem perceber, nosso linguajar e atitudes podem estar contaminados com palavras racistas: negro de alma branca, cor do pecado, negro, mas boa pessoa, serviço de preto… Essas e outras frases expõem um problema que não é apenas cultural, mas tem raízes naquilo que tentamos sufocar com o “joelho” da memória: nossa perversa natureza humana.
Mas e quando o racismo tem justificativa bíblica? É a “maldição de Cam”, sustenta gente de igreja. Em Gênesis 9, tem a história do filho de Noé, que viu o pai embriagado e nu e chamou os irmãos para ver a situação vexatória. Depois que acordou, Noé lançou uma praga contra o filho: “Maldito seja Canaã (filho de Cam). Ele será escravo dos seus irmãos, um escravo miserável”. Diz a tradição que os descendentes de Canaã teriam ido para a África, onde se tornaram escravos devido a essa condição bíblica. Tal interpretação rasteira justificou a escravidão negra na América, tanto que certos padres e pastores também ganharam muito dinheiro com o comércio de escravos, a exemplo do reverendo John Newton, autor do famoso hino “Amazing Grace”, capitão de navio negreiro. Outra justificativa forçada, e porque não dizer cínica, era a explicação que a escravatura negra era uma forma de “introduzi-los na luz da religião cristã e da civilização”. São os absurdos da época, mas que têm respaldo contemporâneo no racismo velado em “sociedades cristãs”.
Estou na leitura de Escravidão, o primeiro volume de uma trilogia que está sendo escrita por Laurentino Gomes. O livro já estava na minha lista desde o ano passado, quando foi lançado. O autor explica a importância do tema: “O Brasil recebeu cerca de cinco milhões de cativos africanos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América”. Isso faz de nosso país a segunda nação com maior número de negros. Com dados atuais, Laurentino confirma por que os negros brasileiros “nunca foram tratados como cidadãos”, apesar da abolição da escravatura. Desigualdade presente na economia, educação, moradia, profissão – injustiças previstas por Joaquim Nabuco ao afirmar que “não bastava libertar os escravos, era preciso incorporá-los à sociedade como cidadãos de pleno direito”. Se hoje tanto se discute no Brasil princípios democráticos, o abolicionista afirmava que o grande problema da democracia brasileira não era a monarquia, mas a escravidão. Escravidão que persiste com outros nomes, amparada pela humanidade que escraviza quase a metade da população mundial na pobreza e na fome. E se o assunto é a discriminação racial, um historiador conclui que “racismo é consequência da escravidão”. Cremos, no entanto, que a raiz de toda esta maldade humana tem outro nome.
Por isso, quando Laurentino conclui que “a escravidão está na genética humana”, na nossa compreensão teológica, ela está na natureza espiritual do ser humano. Esse foi o entendimento de Paulo, submetido ao regime do império romano que, na época, oprimia cinco milhões de escravos: Os seres humanos “estão cheios de todo o tipo de perversidade (…) não têm amor por ninguém e não têm pena dos outros” (Rm 1.29,31). Chamado por Cristo para espalhar o Evangelho, o apóstolo sabia que não adiantava mudar as folhas da árvore, mas a raiz. Por isso não levantou bandeiras para lutar contra estruturas políticas, usou apenas o poder libertador do Evangelho. E assim, sugeriu algo surpreendente: os escravos deveriam obedecer aos seus donos como se estivessem servindo a Cristo, e os donos deveriam tratar os seus escravos com respeito. “Lembrem que vocês e os seus escravos pertencem ao mesmo Senhor, que está no céu, o qual trata a todos igualmente” (Ef 6.9), sugeriu Paulo. Se a proposta de Paulo é absurda quando hoje tanto se defende os direitos humanos, o que dizer da sua carta a Filemom? O apóstolo pede ao escravo fugido, Onésimo, que volte para seu dono, Filemom, enquanto orienta Filemom a receber seu escravo com respeito e amor. Num mundo acostumado na lei do “mais forte domina o mais fraco”, o que Paulo diz não tem sentido.
Mas o que tem sentido neste mundo de contradições? Se de um só homem Deus criou todas as raças humanas para viverem na terra (Atos 17.26), porque o absurdo da discriminação? A resposta está na ponta da nossa língua, e a solução também. Mas isso não basta. Tiago vai direto à questão, e pede cuidado para também não cairmos na incoerência: “Não sejam apenas ouvintes desta mensagem, mas ponham em prática” (1.22). E dá exemplos: “Nunca tratem as pessoas de modo diferente por causa da aparência delas” (2.1). Cita um exemplo bem comum: bajular os ricos e desprezar os pobres numa reunião da igreja. “Falem e vivam como pessoas que serão julgadas pela lei que nos dá a liberdade” (2.12), admoesta o apóstolo. Ou seja, devemos tratar a todos sob a lei do amor daquele que morreu na cruz pelas pessoas pretas, brancas, pardas ou qualquer cor. Parafraseando o padre Antônio Viera, que “o Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”, penso que o tema deste artigo é um grande desafio para a nossa IELB, que tem seu corpo no Brasil e sua alma na Alemanha.