“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi guiado pelo mesmo Espírito,
no deserto, durante quarenta dias, sendo tentado pelo diabo” (Lc 4.1,2a).
Introdução
A tradição da igreja antiga conecta a Quaresma – estes 40 dias entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Domingo de Ramos – aos 40 dias que Jesus passou no deserto, jejuando e sendo tentado pelo diabo, cujo ponto focal de suas tentações era persuadir Jesus a evitar a loucura da cruz. Por isso todas as séries de leituras bíblicas para este domingo têm como evangelho a tentação de Jesus.
Lucas faz uma inversão na ordem das duas últimas tentações que Mateus registra, colocando no final a que Mateus coloca no meio. Dizem que Lucas focaliza Jerusalém como o ponto final da caminhada de Jesus e, por isso, inverte a ordem.
Uma observação que Dietrich Bonhoeffer (pastor luterano preso por causa da Segunda Guerra Mundial) faz a respeito da tentação, no seu livro que leva esse título, é: “Examinada com atenção, a Bíblia só nos relata dois episódios de tentação, quais são a tentação do primeiro homem e a tentação de Jesus Cristo. Ou somos tentados em Adão, ou seremos tentados em Cristo. No primeiro caso, será tentado o Adão em nós, e então será a nossa queda. No segundo caso, Cristo é tentado em nós, o que levará à queda do diabo”.
Não sei o quanto o diabo tenta os que lhe pertencem. Mas, com certeza, ele anda ao redor dos cristãos “como um leão que ruge, procurando alguém para devorar”. Precisamos resistir firmes na fé, com o “está escrito” de Jesus.
A tentação do pão
Então o diabo lhe disse: – Se você é o Filho de Deus, mande que esta pedra se transforme em pão.
É a tentação do pão! Precisamos, inicialmente, cuidar desse “então” do tentador. A ocasião propicia a investida do tentador, pois Jesus está com fome e sede depois de 40 dias de jejum. Já que Jesus diz ser Filho de Deus, por que passar necessidade? O diabo questiona a verdadeira Palavra de Deus. Que Deus é este que deixa seus filhos na dificuldade e silencia no sofrimento?
Cenas de sofrimento invadem todos os dias os nossos olhos. Há pouco ficamos chocados com o que aconteceu da noite para o dia em Petrópolis, RJ, quando uma avalanche soterrou casas, ceifou centenas de vidas e deixou outro tanto sem nada. Agora já estamos na segunda semana de guerra na Ucrânia, onde a Rússia despeja bombas e faz mais de um milhão de pessoas (dados de 06/03/2022) sair, talvez só com uma mochila, e deixar tudo para trás.
Lutero explicou que pão é tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida. Esta é a grande tentação que nos importuna: viver do pão. Nenhum lugar é seguro se há falta de pão! São necessidades que atacam as nossas fraquezas. As tentações são frequentemente ligadas a sofrimento ou desejos físicos. Aí a sugestão de um Deus da prosperidade e da gratificação imediata, que não deixa seus filhos passarem necessidades, é algo muito tentador.
Jesus respondeu: – Está escrito: “O ser humano não viverá só de pão”. Jesus, o servo obediente (que Israel não foi), estava determinado a viver conforme tudo o que o SENHOR Deus diz (Dt 8.3). Este “viverá” não tem o sentido de vida biológica, mas de vida verdadeira, que abrange todas as questões dependentes de Deus, como trabalho, igreja e lazer.
A tentação do poder
Aí o diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe num instante todos os reinos do mundo e disse: – Eu lhe darei todo este poder e a glória destes reinos, porque isso me foi entregue, e posso dar a quem eu quiser. Portanto, se você me adorar, tudo isso será seu. Essa é a tentação da dominação. O tentador se apresenta com suas próprias armas, sem camuflagem alguma ou qualquer simulação, se considera o dono do mundo e deixa claro suas intenções: quer a adoração que deveria ser endereçada a Deus.
As colonizações dominaram o mundo desde o fim da Idade Média até os anos 1970. A partir daí, o domínio dos EUA era inquestionável. Vladimir Putin, segundo analistas arriscam, agora está colocando essa hegemonia em cheque. O que leva Putin a invadir a Ucrânia e colocar nuvens de fumaça nas principais cidades daquele país e assombrar o mundo com ameaça de armas nucleares? Poder! No plano individual, também o domínio das riquezas apresenta esse tipo de tentação. Bens terrenos levam pessoas a ostentar poder e dominação sobre as pessoas.
Jesus respondeu: – As Escrituras Sagradas afirmam: “Adore o Senhor, seu Deus, e preste culto somente a ele”. Paulo resume a vida de oração com essas palavras: “Portanto, irmãos, pelas misericórdias de Deus, peço que ofereçam o seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Este é o culto racional de vocês. E não vivam conforme os padrões deste mundo, mas deixem que Deus os transforme pela renovação da mente, para que possam experimentar qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.1,2).
A tentação de manipular Deus
Depois o diabo o levou a Jerusalém e o colocou na parte mais alta do Templo e disse: – Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo, porque está escrito: – “Aos seus anjos ele dará ordens a seu respeito, para que o guardem. E: – “Eles o sustentarão nas suas mãos, para que você não tropece em alguma pedra”.
É a tentação da fé que arrisca a manipulação de Deus. Nessa investida, o diabo mostra outra técnica: induzir à falsa confiança que nos leva à tentação de risco. Se há uma coisa que nos fascina é correr risco: no excesso de velocidade, no esporte radical, na declaração de renda. A internet, com o “mundo visto de cima”, é o nosso pináculo do Templo.
Aqui precisamos fazer duas observações com relação ao inimigo: 1 – O diabo também frequenta lugares sagrados. Ele também está no templo, na igreja. 2 – O diabo também conhece a Escritura e põe como isca no seu anzol versículos da Bíblia. Aqui ele cita o salmo 91.11 e esquece uma palavra importante: “em todos os seus caminhos”.
Então Jesus respondeu: – Também foi dito: “Não ponha à prova o Senhor, seu Deus”. Somente a Escritura impede que ela seja interpretada e empregada erroneamente. A fé que precisa mais do que a simples Palavra de Deus, chega a ser a tentação do próprio Deus. Tentar a Deus é a maior tentação espiritual.
Conclusão
Talvez ir ao deserto seja uma das maiores dificuldades das pessoas nesses tempos de comunicação fácil. Ser levado ao deserto nos dá a tarefa de pensar sobre o sentido que tem a nossa vida, ou sobre as coisas que perseguimos para dar algum significado a ela. No deserto, nós nos desfazemos de tudo aquilo que não é essencial. Você acha que não somos mais tentados pelo diabo? Se não fôssemos, que razão teria Jesus para nos ensinar a sexta Petição do Pai–Nosso, “não nos deixes cair em tentação”?
“Tendo concluído todas as tentações, o diabo afastou-se de Jesus, até momento oportuno”. Penso que essa oportunidade se deu no Getsêmani, onde Jesus precisou vencer esse momento de extrema pressão, ao clamar: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua” (Lc 23.42).
Em Hebreus 2.18 diz: “Naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados”. Por isso, segundo Bonhoeffer, na tentação importa distinguir o que é resistência ou submissão. A resistência contra o diabo só é possível na total submissão à Palavra de Deus. Temos que nos esconder no manto de Cristo, que nos ensinou: “Orem para que não sejam tentados” (Lc 23.46). Assim seja. Amém!
Nota: anotações da mensagem proferida pelo pastor Lemke, no culto dominical da Congregação Da Cruz, no bairro Petrópolis, Porto Alegre, RS, em 6 de março de 2022. Texto do evangelho do dia: Lucas 4.1-13.
Edgar Lemke
Pastor em Porto Alegre, RS