Nesta edição, apresentamos a terceira parte da conferência do
filósofo alemão Josef Pieper (falecido em 1997), sobre o ato de crer, e seu
alcance antropológico. Aqui se ressalta com profundidade ainda maior a
necessidade de que o Deus da fé seja um Ser Pessoal, um Alguém, capaz de falar,
e não um inócuo Ersatz (substituto),
abstrato ou difuso. Relembramos ao leitor que o propósito dessa conferência é apresentar apenas uma
antropologia da fé (não só a religiosa), que tem o potencial de enriquecer
imensamente sobretudo o campo educacional/escolar.
“Não é por acaso que quando sem acréscimos ou
complementos se fala da fé, de um ‘homem que crê’, ou quando se diz ‘Fulano não
crê’, pensa-se sempre no significado religioso do conceito ‘crer’. No entanto,
não é como se tivéssemos que dar um passo a mais no caminho já percorrido com o
que até agora dissemos sobre o ‘crer’ para com isso atingir o conceito de fé
religiosa.
É certo que continua vigente tudo que dissemos para a
delimitação dos elementos conceituais. Crer, quer se trate de fé religiosa ou
não, significa: aceitar algo inabarcável (inatingível) como
verdadeiro e real pelo testemunho de outro, de alguém que tem conhecimento
próprio do objeto. Permanece também em vigor que ‘crer’ e ‘dar crédito’ são,
para as relações humanas, algo necessário e pleno de sentido, e, além disso, em
geral, evidentes.
Mas com isso não se mostrou ainda que a fé religiosa
seja igualmente necessária e plena de sentido. E no que diz respeito à
evidência vale antes o contrário.
Porque a primeira reação a que se inclina o homem ante
o salto que na fé religiosa lhe é exigido é precisamente a de não o dar. Pois,
de fato, o que se requer não é um passo a mais no caminho, e, sim, precisamente
um salto. Pode-se estar de pleno acordo com o que dissemos até aqui sobre o
crer e, no entanto, deparar-se com um obstáculo insuperável tão logo se
requeira o reconhecimento da fé religiosa como necessária e plena de sentido,
ou, que se realize esse crer.
Por que – é o que se ouve dizer – por que não basta
para o homem o que ele naturalmente pode saber? Por que depender de notícias
que ele mesmo não só não poderá jamais verificar como, sobretudo, tampouco
demonstrar que são verdadeiras? Por exemplo, que Deus se fez homem para nos
possibilitar uma participação na vida divina: eis aí algo que pela própria
natureza das coisas, não se pode provar. Homem algum, por mais genial ou santo
que seja, pode jamais fazer um confronto crítico desta mensagem com a realidade
de que se fala. Mas isto é só um aspecto da questão.
O outro aspecto apresenta uma exigência quase ainda
mais forte. Em todo crer, como dissemos, o decisivo é o ‘crer em alguém’, mais
decisivo do que ‘crer em algo’, já que eu geralmente só aceito o ‘algo’ por ter
aceitado o testemunho de ‘alguém’. Ora, mas esse ‘alguém’, cujo testemunho o
que crê em sentido religioso aceita como verdadeiro e real, é o próprio Deus.
Isto significa que neste caso somos enviados a uma testemunha com quem, além do
mais, não podemos absolutamente encontrar-nos a modo de interlocutor humano, e
que, por outro lado, exige de nós um assentimento total e tão incondicionado
que não nos sentimos de modo algum prontos a dar.
É claro que conceber um tal testemunho dado pelo
próprio Deus, ou dito de outro modo, o próprio pensar numa comunicação
reveladora divina é inviável a não ser que concebamos Deus como um alguém
pessoal, capaz de falar. Porque o ‘Absoluto’ não é capaz de falar. ‘A
Transcendência’ (Jaspers) igualmente não pode falar. Também não fala ‘O
Fundamento do Mundo’ da concepção panteísta. Quer dizer: fé na revelação só é
viável se previamente se concebe Deus como um Alguém-pessoa, isto é, capaz de
falar.” Ora, o falar de Deus nos é dado pelas
Escrituras e a fé é dom do seu Espirito.