Leio o salmo 16. O salmista fala com o Senhor do céu e da terra. Que direito temos de dirigir-nos ao Senhor? Se o Senhor não me tivesse adotado, eu não poderia abrigar-me nele. Só posso dizer: “Tu és meu Senhor”, depois de ele ter declarado: “Tu és meu filho”. Adotado, a conversa circula de filho a pai e de pai a filho. Ídolos (propriedades, vigor, abrigo) seduzem. Se eu trocasse meu Senhor por um deles, o prejuízo seria fragoroso, todos são perecíveis como eu, você, todos nós. Ídolos – cegos e surdos – não sabem nada de si, não sabem nada de mim, não sabem nada de ninguém. Como recusar o ilimitado e escolher o perecível? Na presença do Senhor nós nos definimos, nos personalizamos. Na presença do Senhor, nós iniciamos o conhecimento de nós mesmos, o mundo começa a se tornar familiar; na presença do Senhor, reconhecemos os outros, estabelecemos relações.
A amizade com meu Senhor é antiga. Meus vínculos com o Senhor são únicos e irrepetíveis. Ele vê o que eu não vejo, ensina-me a enxergar o que sem ele não percebo. O Senhor lembra-se de mim, como poderia eu esquecê-lo? O Senhor me acompanha desde as primeiras pulsações. Ouço meu Senhor em vozes que se dirigem a mim. O Senhor sabe que sou fraco, que enxergo mal, que não conheço o caminho em que devo andar. A conversa com meu Senhor me ilumina. Como sentir-me seguro sem a presença do meu Senhor, como superar dificuldades sem as luzes do meu Senhor? No caminho encontro outros andantes em quem descubro qualidades que me faltam. Encontro neles o amparo do meu Senhor.
Como filho, sou herdeiro. Herança não é cabedal passivo, herança é legado que posso desenvolver e transmitir. Se não recebo nada, não tenho nada a fazer, não tenho nada para dar, o legado me faz ativo. O Senhor me dá família, me dá linhagem, me dá bens para administrar. Ele se ausenta para que eu aprenda a trabalhar com os dons que ele me concedeu. Recebo para transmitir. Se eu guardasse para mim mesmo o que recebo, faria o trabalho dos ídolos que recusei. Riquezas só adquirem sentido quando circulam. Riquezas enriquecem as mãos dos que as administram. Além de mim, há outros herdeiros, o Senhor me leva a reconhecê-los, a amá-los, a trabalhar com eles. O legado passa a ser o sentido da minha vida.
A felicidade não vem antes, não vem depois, a felicidade reside no que faço. A felicidade vem quando as dúvidas recuam, quando o caminho em que ando se ilumina. Minha felicidade é interior, ela vem do coração. O Senhor habita em mim. Meu corpo inteiro exulta. A tristeza debilita braços ociosos.
Louvo meu Senhor. Minha voz se une à voz do salmista, das aves, dos insetos, das árvores, une-se à voz dos que já cantaram, dos que cantam, dos que cantarão. A sinfonia é universal. Cantores surgem e silenciam, o canto permanece, legado de outros cantores.