Do resultado da visita de Jesus ao território fenício (Canaan), o evangelista Mateus não diz nada. Tiro e Sidom, prósperos centros de navegação comercial em outros tempos, ainda eram cidades lembradas com respeito depois de vencidas por Alexandre, depois de incorporadas ao império dos Césares. Acentuada era a diferença entre a religiosa Jerusalém e os tumultuados portos do norte, Jesus move-se entre extremos.
Dessa viagem, o evangelista lembra um episódio circunstancial, as aflições de uma canaanita, ela gritava por socorro, não para si, para a filha: Maus espíritos atormentam minha filha (Mateus 15.21). Como esperar informação precisa de uma mãe atormentada? Em lugares e tempos de rudimentares conhecimentos medicinais, males físicos e psíquicos eram atribuídos a espíritos maléficos. De uma região predominantemente pagã, vinham brados de desespero. Ao Messias, que tinha por missão realizar o sonho de séculos, interessavam aflições privadas? A inquietação vem dos discípulos. Se o imprevisto importunava, por que o Mestre não despedia a suplicante? Silenciam-se crianças, pobres, estrangeiros, migrantes.
O silêncio de Cristo tinha outro significado, queria que os seguidores refletissem sobre relações humanas, estavam em solo estrangeiro, Deus silencia para que possamos expressar o que nos inquieta. Qual é a abrangência do trabalho messiânico? Cristo já tinha discutido a questão com os discípulos em outras ocasiões, a estrangeira, ao invocar o profeta como filho de Davi, abre o ensejo de ampliar o horizonte de compreensão.
Em resposta ao silêncio, a canaanita se lança aos pés de Jesus; aconteça o que acontecer, a situação não ficaria pior. Inesperadamente os olhos do filho de Davi caem sobre ela, o profeta fala como representante do povo eleito, não como redentor do mundo; para orgulhosos de feitos passados, estrangeiros valiam o que valem seres desprezados. Cristo fala mais aos discípulos do que à mãe. A canaanita dá-lhe uma resposta que supera fronteiras. Não lhe importava saber se pertencia à raça dos privilegiados ou não. Antes de quaisquer diferenças, a canaanita era uma mulher aflita com uma filha doente. “Preciso de ajuda – pensava, humilha-me se queres, sou mãe.”
Cristo aplaude a mãe aflita, nem em Israel tinha encontrado tanta fé, incluam-se os que abandonaram tudo para segui-lo, os discípulos. A canaanita lançou-se aos pés de Jesus anônima, a fé a inclinou, a fé a põe de pé. A fé rompe barreiras, estabelece vínculos mais fortes do que o idioma, do que o prestígio de ancestrais, do que costumes. O Messias mostra aos discípulos um exemplo vivo de fé. O Messias é de um povo ou de todos os povos? A resposta brilhava no rosto de uma estrangeira em quem a esperança tinha operado transformações eloquentes.
O episódio da canaanita rompe hostilidades culturais, étnicas, espaciais, cronológicas. A mulher de quem não sabemos o nome, ergue-se do anonimato, argumenta; numa época de descrença generalizada, a canaanita responde com fé exemplar. Ela não foge do mal, enfrenta o mal e vence, a canaanita encontra alguém que a socorre fora do limite de instituições, além de fronteiras, Jesus é o futuro da canaanita.
O apóstolo Mateus olha para trás, mais de quarenta anos tinham passado, lembra tempos vividos antes da crucifixão, época de incerteza, de aprendizado. O episódio da canaanita ensina que a dor não conhece fronteiras; em Jerusalém, em Tiro, em Roma, em qualquer outra cidade, a dor é igual.
Somos atordoados pela avalanche de informações gratuitas, imagens substituem presenças, nossos amigos vivem em espaços virtuais, aparelhos invadem espaços privados e os divulgam em redes sociais, atrás de imagens definham pessoas. Crer em quem, se nada vibra atrás da imagem? Desesperos solitários buscam a redenção em paraísos ilusórios, devastadores, quem sufoca a dor na droga, aniquila presente e futuro. Tiro e Sidom atrai mais do que Jerusalém.
O Messias remove fronteiras, socorre angustiados, reconcilia-nos com nossa vida cotidiana, inaugura uma idade sem precedentes, convida-nos a acompanhá-lo na rota a um destino iluminado.