Ao escrever esta coluna, ainda impactados com a despedida e partida para a glória de nosso querido irmão Jacksonn Coelho, pastor e advogado, queremos prestar-lhe uma singela homenagem, descrevendo um pouco das interações entre o Direito e a Teologia.
Esta conexão ainda soa estranha aos “ouvidos modernos”, pelo menos aqui no Brasil. O positivismo francês, que chegou por aqui a partir de 1870, culminando com o golpe de 1889 que destronou Dom Pedro II e instalou uma república, deixou, entre seus discutíveis legados, uma visão desconfiada e até ruim da religião, querendo que ela não tivesse espaço legítimo de influência na chamada arena pública. Iniciou-se, assim, um longo período no século 20, em que o exercício privado da fé passou a ser o foco, sem muita interferência – pelo menos direta – na cultura, na política e, por conseguinte, no Direito.
De fato, um dos grandes traços da modernidade quanto ao relacionamento entre igreja e Estado é o chamado “Estado Laico”, sendo que o poder público está separado e não interfere no poder religioso, e vice-versa. Porém, além dessas duas características, enxergamos no Brasil outras que levam ao reconhecimento de uma laicidade colaborativa, como destacamos em uma obra de nossa autoria.[1] São estas, a benevolência e colaboração (sinais também encontrados em Portugal, Espanha, Itália e Alemanha); porém, somente aqui no Brasil, além de tudo, a igual consideração a toda a manifestação de fé religiosa.
E não era para menos. A cultura e história brasileiras são indiscutivelmente ligadas à religião. Desde antes do primeiro ato público feito pelos portugueses que aqui aportaram (a missa celebrada por Henrique de Coimbra, em 25 de abril de 1500, na praia de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, Bahia), o próprio impulso navegador veio do desejo lusitano de avançar o território conquistado pelos “cruzados”. Nossa herança civilizacional conta com quase 1000 anos de história de defesa, conquista e reconquista de espaços para que a fé cristã pudesse se expressar, florescer e produzir os frutos que hoje vemos, apesar de todas as dificuldades e imperfeições próprias à nossa natureza.
A influência religiosa está em toda a sociedade. Desde os nomes de santos dados a cidades e estados, à presença da Cruz em todas as bandeiras brasileiras desde 1500 (até na atual, veremos sua representação na constelação do “cruzeiro do sul”, também compondo nossa maior honraria cívica), os crucifixos nos prédios públicos, até toda a espinha dorsal de nosso ordenamento jurídico, cuja constituição é promulgada “sob a proteção de Deus”.
A observação mais atenta aos rudimentos do próprio Estado mostrará que não foram deixados de lado elementos teológicos, tirados de seus contextos e transformados em instrumentos de ideologia política. Desde o art. 1º da Constituição, que fala dos fundamentos, passando pelo 3º, que estabelece os objetivos, o 5º, com as garantias individuais, até lá para a frente, a partir do art. 170, que estabelece a ordem econômica e social, veremos influências diretas de documentos teológicos, como, por exemplo, a Encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII.
Importante que, neste 2023, onde tantos temas e assuntos passarão diante de nós, tenhamos por certo que a Teologia segue como fonte de influência tanto para os que creem quanto para os que são o objeto de nosso amor-servidor. Que possamos servir neste ano trazendo temas instigantes para discussão e reflexão. Feliz ano novo!
[1] A Laicidade Colaborativa Brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Vida Nova, 2021.