Fábio Leandro Rods
Advogado
Porto Alegre, RS
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O contexto histórico, social e político
O primeiro contato que tive com o processo penal de Jesus Cristo foi na Faculdade de Direito, no ano de 2001, onde o assunto foi estudado em uma única aula de meia hora. O estudo era sobre o famoso texto elaborado por Rui Barbosa e publicado no Jornal a Imprensa em 1899.
Fiquei apaixonado pelo assunto e busquei mais material. Fiz mais pesquisas e descobri que a ciência do Direito estuda o julgamento de Jesus porque ele é considerado o julgamento mais injusto, mais ilegal e mais parcial da história, mas ao mesmo tempo é um dos grandes julgamentos da história.
Para a ciência do Direito, o julgamento de Jesus trouxe reflexos legais muito importantes, entre eles: a necessidade e a garantia de se ter um juiz imparcial; foi corrigindo os erros apontados no processo de Jesus que muitos países separaram o juiz de qualquer tipo de influência política e religiosa, entre eles o Brasil. Conforme vemos no art. 95 da Constituição Federal, encontramos as garantias que permitem aos juízes brasileiros serem imparciais, que são, basicamente: vitaliciedade; a inamovibilidade; e a irredutibilidade de vencimentos.
Eis a razão de que, desde tempos antigos, o crucifixo foi colocado nos tribunais, para que os juízes jamais se esqueçam que, sempre que for dado espaço para ideologias políticas e religiosas em um julgamento, uma injustiça será praticada.
Então, neste estudo, que faremos em três partes, pretendo mostrar as ilegalidades que foram praticadas no processo de Jesus e as heranças adquiridas das leis hebraicas e romanas que regem nosso ordenamento jurídico até hoje. É resultado de mais de 15 anos de pesquisas.
A primeira informação importante a saber, é no que diz respeito à invasão romana. Os romanos se vangloriavam de serem o único povo do mundo que era civilizado, culto e superior. Eles levavam tão a sério esse sentimento que faziam de tudo para respeitar este dogma. Suas leis e sua postura visavam sempre demonstrar como eles eram civilizados, como eram cultos, como eram superiores. Então jamais agiam de forma contrária, porque tinham muito medo de praticar algum ato que fosse praticado por um povo “não romano”, já que isso significaria igualar-se aos bárbaros, e, fora de Roma, sem exceção, todos os povos eram bárbaros. A regra era: “Roma é luz”.
A cultura dos romanos, no entanto, consistia num paradoxo, pois era, na verdade, tão limitada que ignorava que outros povos, como os hebreus, pudessem possuir uma cultura tão nobre e sistemática que não deixava nada a desejar, e, o mais importante: que possuíssem a lei judaica, que era um magnífico sistema de justiça criminal.
Uma segunda coisa, a saber, é que para entendermos bem as irregularidades no processo de Jesus, é necessário entender o contexto do cenário em que os eventos aconteceram.
Àquela época, no ano 70 a.C., Roma era uma espécie de EUA do mundo oriental.
E, assim como hoje os americanos impõem a sua democracia libertadora, por volta do ano 66 a.C., Roma impunha a sua “civilidade libertadora” aos chamados “povos bárbaros”.
Naquela época, a região da Judeia vivia um conflito interno, e, sob o pretexto de estabilizar pacificamente a região, pois Roma não tolerava guerras internas entre os povos – isso era uma barbaridade, uma falta de civilidade – Roma decide fazer a anexação do território judeu no ano de 63 a.C para levar a sua paz. Divididos, os judeus não tiveram como se opor.
Como a anexação não era resultado de uma guerra, tudo ficava exatamente igual no território anexado, menos a força militar. O povo anexado tinha liberdade política e religiosa, menos força militar e policial. Quem exercitava esta força militar e policial eram os romanos.
A questão é que nem tudo era um mar de rosas. Assim como hoje a política estraga tudo, naquela época também. E graças à política, Herodes, o Grande,[1] rompe a tradição de nomeação de reis pelos sacerdotes e consegue ser nomeado rei da Judeia pelos romanos, em 40 a.C.
Este evento trouxe e firmou um sentimento de revolta entre os judeus, porque os romanos haviam subtraído de Deus (e politicamente dos sacerdotes), a tarefa e o poder de indicar o rei dos judeus.
Herodes, o Grande, era um admirador da cultura grega e romana, e iniciou na região um grande programa de construções em que se destacaram: a reforma do Templo, transformando-o no mais imponente e magnífico prédio de toda a península; também a construção das cidades de Cesareia e Sebastia, e as fortalezas de Heródio e Massada.
Além disso, Herodes criou um grande embaraço, dividindo a região da Judeia em três partes, uma para cada filho: Herodes Arquelau;[2] Herodes Antipas; e Herodes Felipe. Esta divisão se chamava Tetrarquia. Herodes Arquelau assumiu o trono após a morte do pai, mas foi banido pelos romanos, e em seu lugar assumiu o prefeito Pôncio Pilatos.
Surge então uma nova crise, pois, agora, parte do povo era governado por um “não judeu”. Outra parte, por Herodes Antipas, que governava a região da Galileia, e outra parte, por Herodes Felipe.
No entanto, a partir do ano 6 a.C., com a mudança política de Roma, a Judeia deixou de ser um território anexo para virar província, ou seja, passou a ser Roma, pertencer a Roma, e, com isso, aumentaram as opressões contra o povo.
Este era o cenário político e social que Jesus encontrou: uma terra com três reis; com leis hebraicas; com governo romano; e várias facções políticas lutando pela unificação deste poder. Estas facções eram: os saduceus, os escribas, os fariseus, os zelotes e os essênios.
Judas I scariotes era um zelote. Acreditava que o Messias era um libertador do Império Romano e que iria liderar uma revolução armada. Ou seja, Jesus viveu e pregou num ambiente extremamente conturbado, com muitos conflitos internos (entre o próprio povo) e externos (contra Roma), de exploração social e sofrimento do povo, distorção religiosa e miscelânia cultural. Jerusalém havia sido remodelada ao estilo romano, com muitos palácios e casas nobres. Tudo isso exigiu muito dinheiro, consequentemente, a imposição de altos impostos, e, paralelamente, o povo sofria com a opressão de seus reis maus e da guerra interna entre as facções políticas. O povo estava sendo esmagado por várias forças terrenas, o que justifica a piedade e a compaixão que Jesus demonstrava em suas pregações.
E este era também o ambiente conturbado em que ocorreu a prisão e o julgamento de Jesus.
O processo judaico
Jesus respondeu a dois processos judiciais antes de ser morto. Um processo judaico e outro, romano. Os dois processos juntos somam 20 ilegalidades. Catorze, no judaico, e seis, no romano. Vamos examinar uma por uma:
1ª ilegalidade: a prisão ocorreu à noite.
Como vimos antes, a política judaica era uma teocracia, em que religião e governo eram uma coisa só. Religião e leis eram uma coisa só.
Na lei de Deus era proibido fazer qualquer coisa escondida, por esse motivo, todos os julgamentos e prisões eram realizados à luz do dia e perante o povo, eram públicos.
Como é hoje, no Brasil?
O art. 245 do Código de Processo Penal determina que a busca na casa de um acusado somente ocorra durante o dia. Prisão à noite, só em caso de flagrante ou se existir uma ordem judicial especial.
Também não se realizam atos judiciais em segredo, nem julgamentos, nem prisões, assim preveem os artigos 155 e 172 do CPC. Todas as audiências são públicas e todos os processos são públicos, à exceção são os processos e audiências relativas à família ou aqueles em que por um motivo especial o juiz decreta o sigilo.
Na prisão de Jesus, essa regra não foi obedecida. Ele foi preso à noite. De forma contrária à lei hebraica.
2ª ilegalidade: a prisão de Jesus foi realizada pelos soldados do templo.
No imaginário popular e nos cenários e quadros de arte e cenas de teatro, pintam e encenam a prisão de Jesus sendo executada por soldados romanos. Na verdade, não teria sido assim, Jesus teria sido preso por guardas do Templo de Jerusalém, chamados de templários. Isso porque a ordem de prisão foi dada pelos sacerdotes, e não pelo prefeito, e os romanos não cumpriam ordens dos sacerdotes.
Conforme já vimos antes, Roma tinha uma preocupação em manter a ordem nos territórios anexados. Os generais romanos podiam mexer em qualquer coisa na Judeia, menos na religião. A religião era livre, e o Templo era intocado, porque os romanos sabiam que se eles entrassem no Templo, os judeus se revoltariam, e Roma não tinha interesse em guerras. Guerras significavam gastos elevadíssimos para o Império e um enfrentamento desnecessário entre o imperador e o Senado de Roma. Era um jogo de poder: se o imperador tivesse que dar explicações ao Senado; alguém teria que dar explicações ao imperador, e este alguém eram os prefeitos.
Então a saída dos governantes romanos, chamados de prefeitos, era manter a paz a todo custo. No caso da Judeia, se paz significava manter um rei debaixo dos panos, eles mantinham, se significava não entrar no Templo, eles não entravam, se significava não cobrar impostos do Templo, eles não cobravam. Logo, como o Templo significava religião, e não se mexia na religião, foi permitido que os judeus mantivessem os templários.
Os templários eram os guardas do Templo. Guardas armados, e, conforme já vimos antes, quando um território era anexado, a força militar e policial passava a ser executada pelos romanos. Isso aconteceu com Israel. Eles não tinham mais exército, sendo assim, os guardas do Templo não podiam sair do Templo armados porque eles só tinham permissão para usar armas dentro do Templo, e não fora dele.
Se os templários fossem surpreendidos pelos romanos fora do Templo, eles seriam presos.
Pois Jesus foi preso ilegalmente por soldados do Templo e não por soldados romanos que exerciam a atividade militar e de polícia, portanto, sua prisão foi extremamente ilegal.
3ª ilegalidade: a ordem de prisão tem por base a traição.
A traição não é admitida na lei de Deus. Jesus foi traído por Judas, que era seu discípulo, logo, todas as acusações contra Jesus também se aplicavam aos discípulos. Judas deveria, por isso, ter sido preso e julgado juntamente com Jesus, mas não foi.
E como é hoje?
A traição não era aceita pela lei dos homens até a década de 1980. Esse quadro mudou quando o mafioso Tommaso Buscetta foi preso no Rio de Janeiro. Buscetta revelou todo o funcionamento da máfia na Itália; o juiz Giovanni Falcone viu que aquela era a oportunidade de acabar com a máfia. Por isso, fez um acordo com Buscetta: ele revelava a identidade e provas contra a Máfia, e seria liberado.
Com isso, a Itália realizou a maior prisão na história, foram mais de 180 mafiosos presos. O resultado disso foi o surgimento do fenômeno pentite, e que influenciou as leis em todos os países, inclusive no Brasil, sendo aqui chamada de “Delação Premiada”.
Hoje, após a década de 1980, para alguns tipos de crimes, a traição passou a ser admitida.
Fora isso, na legislação penal brasileira, a traição, o traidor, responde pelo crime juntamente com aquele que ele trai. E na época de Jesus era exatamente assim. Logo, a motivação para a ordem de prisão de Jesus também era ilegal por esse motivo.
4ª ilegalidade: Jesus, preso, é levado para a casa de Anás.
Após a prisão, Jesus foi levado para a casa de Anás, que era sogro do sumo sacerdote. Esta ilegalidade é gritante. A lei da Torá proibia isso. As acusações ao preso só podiam ser feitas frente ao juiz, no Sinédrio, e nunca, jamais, na casa particular de alguém. Esta lei também prevalece até hoje.
Todo o preso deve ser conduzido imediatamente para a autoridade policial. O preso, no Brasil, após a sua prisão, não pode ser levado para um campo, uma casa ou qualquer outro lugar, isso torna a prisão nula.
E no processo de Jesus, sua acusação foi feita dentro de uma casa particular.
5ª ilegalidade: Jesus é julgado em foro privilegiado.
Após ser acusado na casa de Anás, Jesus foi levado ao Sinédrio. Sinédrio[3] era o segundo grau. Existiam, no direito hebraico, os juízes que decidiam as causas menores (primeiro grau), e o segundo grau, que decidia as causas complexas ou as apelações.[4]
Como é hoje?
A mesma coisa:
Todos os processos são julgados por um juiz, chama-se instância de primeiro grau. Quando a pessoa não aceita a decisão, ela recorre (apela) a uma corte de três juízes (segundo grau), chamados de desembargadores. Conforme o grau de recurso ou a complexidade do caso, aumenta o número de desembargadores que irão julgar o caso, chegando-se até o máximo que se chama Pleno, composto por 25 desembargadores.
Assim também era em Jerusalém. A composição do Sinédrio ou Tribunal Pleno era de 70 membros. Um sumo sacerdote (juiz principal), equivalente ao presidente do Tribunal no Brasil; 23 anciãos, que eram a Câmara do Povo; 23 sacerdotes (Câmara Religiosa) e 23 escribas (Câmara Legal).
Esses juízes tinham que ter mais de 40 anos de idade, experiência em três cargos de dignidade e uma integridade incontestável.
O Poder Judiciário hebreu era assim composto: o primeiro grau, chamado de Tribunal dos Três, que funcionava nas portas das cidades e julgavam delitos comuns. O segundo grau, chamado de Tribunal dos Vinte e Três, que existia em cidades com mais de 120 famílias; e a corte superior, que era o Sinédrio.
Como é hoje no Brasil: temos o primeiro grau, chamado de Vara Judicial, composto por um juiz, em todas as cidades. E o segundo grau, chamado de Tribunal, composto por três desembargadores, um em cada estado. No segundo grau, temos ainda os tribunais superiores em âmbito nacional, que são: o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decide questões federais, o Supremo Tribunal Federal (STF), que decide questões constitucionais.
Todo julgamento encerra com uma sentença dada por um juiz. Chamado juízo singular ou de primeiro grau. Esta sentença, que é dada por uma única pessoa, pode ser revisada e alterada através de um recurso no Tribunal. Tribunal é o segundo grau.
Portanto, em condições normais, não há como começar um processo no Tribunal. Somente algumas pessoas podem ser processadas diretamente no Tribunal, é o que se chama de foro privilegiado, é uma herança da lei judaica. Jesus não poderia ser julgado no Sinédrio porque o caso dele não estava nas competências do segundo grau.
Nota: Este artigo continua na próxima semana
[1] Foi quem determinou a morte de crianças em busca do Messias.
[2] Foi de quem José fugiu com Maria indo para Nazaré.
[3] Os julgamentos ocorriam à moda oriental. Partes e membros da corte se reuniam em círculo, sentados em almofadas distribuídas pelo recinto, daí a origem da palavra “sanhedrim”, que significa: “sentar-se juntos”.
[4] Na competência do Sinédrio, estavam: questões rituais envolvendo o Templo; procedimentos relativos à descoberta de cadáver; julgamento de adultério; questões de dízimo; preparo da Torá; redação do calendário judaico; resolução de conflitos envolvendo leis e rituais. Não havia competência para julgamento de crimes, somente em concorrência com cortes seculares, em âmbito de apelação.