Gracias por la vida

Reflexão do pastor Cesar Motta Rios no Dia Nacional de Ação de Graças

Neste Dia Nacional de Ação de Graças, lembro daquela composição genial da chilena Violeta Parra, que, no Brasil, conhecemos mais pela interpretação da argentina Mercedez Sosa: Gracias a la vida.

A letra é incrível. Um catálogo poético de motivos de gratidão: o sentido da visão, a audição, a linguagem, os relacionamentos mediados pela linguagem, o coração (consciência) que reage ao mundo, a arte, a comunhão… E, permeando todo o catálogo, há uma referência insistente ao par romântico. É como se, no pensamento e nos versos, a vida toda, com seus mais variados dons, confluísse para esse amor profundo e entranhado, presente em todo pulsar do corpo e em toda reflexão.

Em resumo, a música é uma expressão de gratidão à vida toda por tudo. Contudo, não se engane! Não é música festiva. Há toda uma atmosfera contemplativa e intimista ao longo de praticamente todas as estrofes. Talvez, isso se quebre um pouco ao final, na repetição insistente do “Gracias a la vida!”.

Talvez”, digo, porque essa repetição explosiva está na interpretação de Merecedez Sosa, mas não na interpretação original. Além do mais, talvez por saber disso, acaba que ouço a voz pungente da cantora argentina não como pura força de celebração, mas com o tom de insistente lamento.

Certamente, a história contribui para essa suspeita. Gracias a la vida faz parte do álbum Las últimas composiciones, que é de 1966. O título já nos sugere um tom meio melancólico. Para completar, meses depois do lançamento do álbum (com esse título e essa música), a vida da compositora chegou ao fim, por vontade dela mesma.

Há quem sugira, por isso, que haja uma intenção irônica na composição. Embora eu já tenha pensado mais ou menos assim, hoje, não me parece ser necessariamente o caso. A gratidão à vida está aí expressa de modo direto e sincero. Ela não cria, por sinal, uma idealização da vida. Quando fala da audição, por exemplo, não menciona somente belos sons da natureza, mas sons urbanos estridentes. Fala de riso, mas também de pranto como dom da vida. Quando vislumbra o coração frente ao mundo, aponta para a distância entre bem e mal.

O poema não simula uma realidade de conto de fadas. A vida é grandiosa, generosa, mas não é plácida, cristalina e sempre acolhedora. Se o amor romântico passeia pelos versos à luz do dia, parece que também perambula por ali, mas meio que pelas sombras, alguma nota de angústia.

E seguimos cantando. A vida tem disso. Eu sigo cantando. É uma música linda.

Só um detalhe pessoal sobre quando escuto e cantarolo: Seu caráter meio catalogal faz com que eu me lembre da explicação de Lutero no Catecismo Menor para o Primeiro Artigo do Credo Apostólico:

Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas; e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os membros, razão e todos os sentidos, e ainda os conserva; além disso, me dá vestes, calçados, comida e bebida, casa e lar, esposa e filhos, campos, gado e todos os bens.

Duas diferenças me saltam aos olhos. Uma tem a ver com o gênero do texto. Lutero visa a didática. Não almeja a beleza buscada e encontrada por Violeta. Ele só enumera, acumula palavras que se referem a tais e tantas coisas. Ela, no ofício de poeta, tece com palavras algo que vai muito além das coisas que podemos ver, tocar ou mesmo entender. Outra diferença está na identidade do sujeito da doação. Nas palavras do pedagogo cristão, é Deus, o Todo-poderoso. Na poesia, é a vida, que, por recurso literário, é personificada, mas que permanece pouco delineável, absolutamente misteriosa e inusitadamente silente como interlocutora.

A vida, a gente vive. E ela passa. Com Deus, a gente fala. E ele é. Desde sempre. Para sempre.

Falamos com Deus com confiança de que nos ouve. Se tentamos falar com a vida, pode ser por muita desesperança, por solidão ou pura emoção.

Longe de mim sugerir que o caminho dos seres humanos se bifurca de forma clara e simples aqui: uma rota levando à vontade de viver até o fim e outra conduzindo fatalmente à desistência da vida. Claro que não! Há diversos outros fatores envolvidos em um desfecho tão triste, inclusive fatores biológicos, que podem ter tido parte no caso da compositora chilena.

Não proponho que estabeleçamos aqui um juízo sobre nada nem ninguém, pessoa ou canção, mas que nos lembremos de que a vida não é para nós incerteza. Não caminhamos em solidão numa jornada carente de sentido em meio a uma grandeza deslumbrante, mas potencialmente angustiante. Caminhamos como rebanho do Bom Pastor, que, embora grandioso, majestoso e inefável, nos ouve como a filhos amados, porque, de fato, fomos tornados tais pela ação amorosa do Filho crucificado e ressuscitado.

Neste dia, portanto, expressamos nossa gratidão. Talvez, não façamos isso com muita inspiração e poesia. Certamente, não nos expressamos gratidão à vida, mas a Deus, pela vida que temos vivido, uma vida, que, mesmo que não seja de todo compreendida o tempo todo, tem rumo e propósito, visto que ela (enquanto experiência biográfica) não é para nós habitação ou tudo que temos. É trilha de peregrinação. Em Deus, nossa morada. A ele nossa gratidão.

Ele ouve. Ele acompanha e pastoreia. Creia.

¡Muchas gracias, Señor! ¡Gracias por la vida!

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