Compare estas duas estrofes de hinos
O mundo venham assaltar demônios mil, furiosos, jamais nos podem assombrar, seremos vitoriosos. Do mundo o opressor, com todo rigor julgado ele está; vencido cairá por uma só palavra. |
O que tens suportado foi minha própria dor; eu mesmo sou culpado de tua cruz, Senhor. Oh! vê-me aflito e pobre: só ira mereci; com tua graça encobre o mal que cometi. |
Acima temos contrapostas duas estrofes de hinos de épocas bem distintas: à esquerda, temos a terceira estrofe do hino “Castelo Forte”, de Martinho Lutero, escrita por volta do ano 1528; à direita, temos a terceira estrofe do hino “Ó fronte ensanguentada”, de Paul Gerhardt, escrita no ano de 1656. O primeiro hino proclama a Palavra de Deus de maneira objetiva; o segundo hino proclama a Palavra de Deus de maneira subjetiva. O primeiro hino usa o pronome “nós”; o segundo hino, o pronome “eu”.
O hino “Castelo forte” e muitos outros hinos da época da Reforma anunciam a Palavra de Deus correta e objetivamente. Sentimentos pessoais não são apropriados para a proclamação da mensagem objetiva da salvação pela fé em Cristo Jesus. O tempo da Reforma precisava colocar a ação de Deus como motivadora da salvação da humanidade. Era preciso deixar claro que não são esforços pessoais que vão conquistar a salvação. Esta já está realizada na morte e ressurreição de Jesus.
O hino “Ó fronte ensanguentada” reflete o que se passava na época, especialmente na Alemanha. A nação toda sofria ainda fortemente as consequências da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Aqueles que não tinham morrido na guerra, eram alvos de flagelos ainda mais mortais, como peste e fome, consequências da guerra. E não só isso: saques e massacres eram constantes. O povo se perguntava por quanto tempo duraria esse flagelo. Era necessário trazer conforto ao povo, e Paul Gerhardt foi instrumento de Deus para trazer conforto através de seus hinos.
Paul Gerhardt é o escritor de hinos de maior destaque durante o período da Guerra dos Trinta Anos e dos anos que sucederam à guerra. Escreveu 130 letras de hinos, nas quais a Palavra de Deus e a aplicação dessa Palavra é expressa de maneira emotiva, visando trazer o conforto diretamente para a pessoa que estiver cantando. Por isso é frequente o uso dos pronomes pessoais “eu” e “meu”. Assim, os hinos de Paul Gerhardt marcam a transição dos hinos confessionais da Reforma para hinos de natureza subjetiva e devocional.
Poderia se pensar que os hinos de Paul Gerhardt, por serem de caráter subjetivo, pudessem ter caído para um sentimentalismo firmado na pessoa ao invés de firmar-se na objetividade da Palavra de Deus. Mas isso não aconteceu. Podemos ver isso no hino “Ó fronte ensanguentada”, que estamos contrapondo ao “Castelo Forte”.
· Na primeira estrofe sou levado a cantar: “Ó fronte outrora ornada/de eterna glória e luz,/agora desprezada…”. Podemos ver que aqui, de maneira figurada, Paul Gerhard mostra a humilhação de Cristo em ir até a morte por mim.
· A segunda estrofe inicia de maneira contemplativa: “Ó rosto glorioso,/que sempre fez tremer/o mundo poderoso, fizeram-te sofrer!”. Aqui o autor mostra claramente que Jesus carrega os pecados de todo mundo até a cruz.
· Na terceira estrofe sou lembrado: “eu mesmo sou culpado/de tua cruz, Senhor”. Aqui Paul Gerhard expressa que Jesus assume a minha culpa para morrer pelos meus pecados.
· Na quarta estrofe sou lembrado: “Pertenço ao teu rebanho/Jesus, meu bom Pastor”, ou seja, Jesus me reúne ao seu povo.
· Na quinta estrofe sou lembrando de que tenho motivo para seguir Jesus, pois “A fim de me remir/a própria vida deste”.
· A sexta estrofe me apresenta a motivação para que eu louve ao Senhor: “Penhor tão precioso/me vem da tua cruz!/Por este dom gracioso/te louvo, meu Jesus”.
· Diante da morte que assolava a Alemanha, Paul Gerhard trouxe conforto também para este momento final da vida. Na estrofe sete, posso cantar: “Perfeita garantia / na morte me vieste dar./Que toda a tua angústia/me livre da aflição:/e o diabo e sua astúcia/não mais me afligirão”. E na estrofe oito, sou lembrado de que Jesus, com sua dor, se tornou “meu escudo forte,/glorioso Vencedor” e que, “Assim é bom morrer!”.
O período da Guerra dos Trinta Anos e os anos que se seguiram têm algumas coisas a nos ensinar para este nosso tempo de pandemia. Podemos começar dizendo que naquela vez foi muito pior do que hoje. Apesar de não termos o remédio ideal para a Covid-19, temos medicina, hospitais e recursos muito melhores atualmente. Os meios de comunicação hoje também nos favorecem a transmissão da Palavra de Deus, o que no século dezessete era inimaginável.
Onde está Deus nesta pandemia? Ele está conosco, assim como esteve no tempo da Guerra dos Trinta Anos. Naquela vez, ele esteve no conforto que Deus deu através dos hinos de Paul Gerhardt e na sua Palavra pregada e anunciada por muitas pessoas. Deus esteve naqueles que, em meio à peste, fome e morte, estenderam sua mão para acolher os que estavam angustiados e doentes. E hoje, onde está Deus? Ele está na Palavra que é anunciada nas devoções domésticas, ele está na Palavra que é anunciada pelas mídias sociais, ele está em nossos hinos que podemos cantar ou ler. Aí está Deus, nos garantindo que, apesar da pandemia, a vida eterna continua segura, aguardando nossa vez de partir e estar com “Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23).
Os hinos de Paul Gerhardt parecem que foram escritos para esses tempos atuais de pandemia. Eles falam ao coração, mostrando-nos Jesus como nosso Salvador pessoal. Aquela “fronte ensanguentada” de Jesus na cruz é o sofrimento que Jesus passou por causa dos meus pecados. E o sofrimento pelo qual passo agora posso suportar, cantando com Paul Gerhardt: “Que toda a tua angústia/me livre da aflição” (estr. 7). Deus, livra-me da aflição da pandemia, mas, principalmente, da aflição causada pelo pecado, o que só Jesus pode fazer.