A Bíblia é um livro para ser colocado em prática!

A Bíblia não é um livro para ser explicado e discutido, mas para ser colocado em prática. Essa é a convicção de pelo menos uma das muitas denominações cristãs ou evangélicas, no Brasil. Em função dessa postura, esse grupo cristão se mostra avesso à Bíblia com notas, não dá importância a referências cruzadas na Bíblia (aquelas letrinhas em sobrescrito que remetem a outros textos bíblicos), não querem uma Bíblia de estudo ou coisa que o valha. Querem unicamente o texto da Bíblia, para ser lido e vivido. Afinal, como dizem, a Bíblia é um livro para ser colocado em prática. (Entre parênteses, faço um comentário: Quando a gente acompanha a discussão de alguns temas bíblicos nas redes sociais, temas chamativos, mas sem maior conexão com a mensagem central das Escrituras, isto é, em nada relacionados com o Deus em Cristo, pode até acabar simpatizando com essa postura mais obscurantista de apenas transferir para a vida o que a Bíblia preceitua.)

Também nós, que subscrevemos o princípio do “Somente a Escritura”, dizendo que só ela é nossa “norma de fé e vida”, facilmente entramos no coro dos que dizem que “a Bíblia é nosso manual de vida”. Correto. Mas como vamos entender isso? Será que isso significa que a Bíblia pode ser colocada em prática literalmente e em tudo que ela ordena? E o que acontece quando a Bíblia não fala diretamente sobre um assunto, especialmente as difíceis questões provocadas pelo avanço da ciência? Um exemplo disso é a pergunta: Podemos prolongar artificialmente a vida humana, por meio de aparelhos? A Bíblia não tem uma resposta direta.

Não faltam os que dizem seguir literalmente a Bíblia e aqueles que, honestamente, procuram colocar seus preceitos em prática. Como um cristão luterano vai encarar isso é algo que ainda teremos de abordar, ao final. De momento, quero falar sobre uma experiência relacionada com aqueles que afirmam colocar em prática, num sentido literal, todos os preceitos bíblicos.

“Um Ano Bíblico”, de A. J. Jacobs

A experiência a que me refiro é a de um (à época) jovem jornalista nova-iorquino chamado A. J. Jacobs. Descendente de judeus, mas declaradamente agnóstico (para não dizer ateu), Jacobs ficou intrigado com o crescimento do fundamentalismo religioso (outro termo para essa pretensão de seguir a Bíblia ao pé da letra) nos Estados Unidos. Assim, Jacobs decidiu viver durante um ano como a Bíblia manda. O relato desta experiência, na forma de um diário, está em Um Ano Bíblico, livro publicado em 2007 e traduzido ao português em 2011.

O título do livro em português é um tanto enganoso, mas uma tradução mais literal do título em inglês deixa claro que ele optou por “Um ano de vida segundo a Bíblia”. O subtítulo da tradução brasileira descreve essa experiência como “curiosa e bem-humorada”. No original inglês, o subtítulo é um pouco diferente: “a humilde tentativa de seguir a Bíblia da forma mais literal possível”. Confesso que esse é um dos livros mais profundamente teológicos que já li, mesmo escrito por alguém que não é teólogo (ou, então, que é mais teólogo do que podia imaginar).

O autor reuniu várias edições da Bíblia e se pôs a ler toda ela, em busca dos mandamentos que contém. Lendo cinco horas por dia, concluiu a leitura em um mês. Jacobs confessou que não esperava encontrar tanta coisa estranha na Bíblia. Catalogou mais de 700 leis. Dessas, 613 já haviam sido compiladas ou separadas durante a Idade Média, por ninguém menos do que o famoso rabino Maimônides. O número de Jacobs é maior, porque ele decidiu incluir o Novo Testamento.

Os mandamentos em prática

Feita a lista dos mandamentos, Jacobs tomou uma série de medidas, em cumprimento a palavras bíblicas. Ele queria seguir a Bíblia literalmente e de forma consistente. Queria, no fundo, ver o que é atemporal ou eterno na Bíblia e o que, segundo ele, está ultrapassado. Pediu a um rabino que viesse examinar com microscópio as roupas dele, para ver se não eram feitas de combinação de tecidos (algo que a Bíblia proíbe, em Levítico 19.19). Acabou vestindo uma túnica branca de linho em plena Nova Iorque. Deixou crescer a barba, provavelmente em atenção a Levítico 21.5. Hoje, cabe acrescentar, existem denominações cristãs que, supostamente em conformidade com a Bíblia (mas, ao que tudo indica, mais por razões de ordem ideológica), colocam em disciplina (leia-se: excluem da santa ceia) homens que estão com a barba por fazer! Nos tempos do Antigo Testamento, era o contrário: raspar a barba era uma vergonha (2Sm 10.4,5).

Jacobs foi falar com representantes da maioria dos grupos religiosos norte-americanos que professam seguir a Bíblia à risca, incluindo os manipuladores de serpentes e as testemunhas de Jeová. Chega a afirmar que talvez tenha sido o único sujeito que conseguiu levar uma testemunha de Jeová a querer se livrar dele. Acontece que Jacobs convidou essa pessoa a vir ao apartamento dele (algo que já causou surpresa) e, depois de mais de três horas de conversa, essa testemunha de Jeová não via a hora de ir embora, pois tinha compromisso com algum familiar. Normalmente, o que se vê é o contrário: as pessoas querendo se livrar das testemunhas de Jeová! Mas Jacobs tinha mais uma pergunta, mais outra pergunta…

O que Jacobs descobriu

Antes de citar as conclusões a que chegou em relação aos outros, menciono o que Jacobs descobriu em relação a si mesmo. Descobriu que, numa cidade como Nova Iorque, com tanta coisa exposta em vitrines, o mandamento mais difícil de cumprir é aquele que proíbe a cobiça. Descobriu também que mentia mais do que imaginava. Sabia que era mentiroso, mas quando começou a se policiar, ficou apavorado com a quantidade de mentiras. Não mentir significa, por exemplo, sempre dizer o que se está pensando, quando alguém nos pergunta: “Você está pensando em quê, agora?”

Jacobs ficou sabendo, por meio de um pastor luterano aposentado, que os cristãos ensinam que a lei foi cumprida em Jesus Cristo e que existe diferença entre lei cerimonial e lei moral. Entrou em contato com o evangelho, mas não o aceitou. Mas tornou-se, como ele mesmo disse, um agnóstico reverente ou respeitoso. Descobriu que, embora se pense que apenas o contrário acontece, uma mudança de comportamento pode resultar numa mudança de pensamento.

A lição maior

O objetivo de Jacobs era fazer uma experiência para poder escrever um livro, e isso ele conseguiu. Ao adotar a postura dos judeus ortodoxos, que afirmam que todos os mandamentos bíblicos são iguais, ou seja, que não existe mandamento mais ou menos importante, descobriu que, em muitos momentos, ao querer cumprir um mandamento, acaba-se transgredindo outro. Não é possível cumprir todos esses 700 mandamentos ao mesmo tempo, pois seria como um malabarista querer conservar 700 malabares (ou bolinhas) no ar ao mesmo tempo. E, digo eu, citando Tiago, “quem guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos” (Tg 2.10).

A mais importante conclusão de Jacobs é que todos esses que dizem seguir a Bíblia ao pé da letra selecionam alguns mandamentos bíblicos e omitem outros. Ele chama isso de “religião de lanchonete”. Não é possível colocar tudo no prato ao mesmo tempo; é necessário escolher algumas coisas e deixar outras de lado. Alguns impõem o dízimo, mas não observam o sábado, por exemplo. Outros observam o sábado, mas não circuncidam os meninos. No final, Jacobs concluiu que não se pode (e não se deve) colocar a Bíblia em prática literalmente.

A resposta que Jesus nos dá

Mas o que faremos, então, com esses 700 mandamentos que estão na Bíblia? Aqueles que estão no Antigo Testamento precisam vir ao nosso tempo, passando pelo túnel que se chama Jesus Cristo. E, nessa passagem, muita coisa fica absorvida em Cristo. Isso equivale a dizer que a assim chamada “lei cerimonial” ou lei religiosa do Antigo Testamento (incluindo o que se refere a comidas, vestuário, cabelo) não está mais em vigor. Além disso, tudo que não foi reafirmado ou repetido no Novo Testamento está abolido em Cristo. Paulo fala sobre “a liberdade que temos em Cristo Jesus” (Gl 2.4).

Outra resposta quanto aos mandamentos da Bíblia nos vem de uma história que aparece em Mateus 22.34-46. Um intérprete da lei, representando os fariseus, quis saber de Jesus qual é o “grande mandamento na Lei”. A pergunta foi feita num contexto em que se discutia se todos os mandamentos eram iguais ou não. Os fariseus pensavam que sim, pois todos davam à pessoa a chance de cumpri-los e conseguir algum mérito. Se Jesus fosse fariseu, teria respondido: “Todos os mandamentos são importantes”. Mas Jesus nos ensinou que a lei de Deus se resume em amar a Deus com todas as nossas forças e amar as outras pessoas como amamos a nós mesmos. O apóstolo Paulo reafirma isso em Romanos 13.8-10 e Gálatas 5.14. Portanto, esta lei está em vigor, no Novo Testamento.

Mas não podemos perder de vista que, logo em seguida, Jesus faz uma pergunta aos fariseus. E as perguntas de Jesus sempre são mais importantes do que as nossas. Jesus aponta para o Messias, que, mais do que filho de Davi, é o Senhor de Davi! Mas por que Jesus faz essa pergunta quanto ao Messias? Porque, segundo se pensava na época (e conforme se lê nas Epístolas de Paulo; veja-se Rm 10.4 e Gl 3.23-25), a vinda do Messias (o Cristo) daria por encerrado o tempo da lei. Ao fazer aquela pergunta, Jesus estava dizendo: Em vez de discutir sobre a lei, é preciso levar em conta a vinda do Messias.

O foco na esperança

Assim, para alguém como Jacobs e toda uma multidão de gente que só enxerga os mandamentos da Bíblia, pensando que tudo ainda precisa ser colocado em prática, precisamos lembrar Romanos 15.4: “Tudo o que no passado foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”. A intenção principal da Bíblia é criar esperança. E como ela faz isso em nossa vida? Falando-nos dos planos e da ação de Deus. De nossa parte, isso acontece, não quando saímos a fazer coisas, mas quando sentamos e ouvimos a mensagem da Bíblia. Como fazemos, por exemplo, no Natal. Como fazemos na Páscoa. Como fazemos em cada culto. Como fazemos fora do culto, vivendo com esperança.

Portanto, a Bíblia é, acima de tudo, um livro para ser ouvido (também lido) e crido. Ah, o amor a Deus e ao próximo continuam em vigor.

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