Nos dois artigos anteriores, começamos a indicar os fundamentos de uma filosofia da educação clássica, representada contemporaneamente pelo filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997), que busca resgatar o essencial da tradição do pensamento clássico, que pode ser muito sugestivo para o educador cristão, sobretudo em tempos de desorientação e orfandade de valores. Como já tenho feito anteriormente, seguirei o pensamento de Pieper a partir dos estudos de Jean Lauand, prof. titular da Faculdade de Educação da USP, também ele um pensador cristão e a principal referência pieperiana no Brasil.
A Filosofia da Educação, qualquer que ela seja, é, no fundo, Antropologia Filosófica, uma via de acesso ao que, essencialmente, o homem é e está chamado a ser. Assim, quando afirmávamos o papel primordial da admiração e do ócio (no sentido clássico de skholé) para a educação, estamos também dizendo que o homem é um ser vocacionado para admirar-se e que só na disponibilidade interior da skholé pode se realizar plenamente.
Hoje, daremos outro importante passo nessa mesma linha educacional-antropológica. Pieper afirma que a verdadeira educação deve (claro que proporcionalmente de acordo com a idade e amadurecimento dos alunos) transcender os particularismos e ser “abertura para o todo” (Offenheit für das Ganze). Ao mesmo tempo que se ensina gramática, matemática ou qualquer disciplina, para além da parte técnico-prática da aprendizagem, deve-se abrir a possibilidade de diálogo e reflexão para a realidade como um todo, ou, como na formulação de A. N. Whitehead, a perguntar: “What is it all about?” – o que isto tem a ver com o todo, o que há no fundo disso?
Acontece que essa “abertura para o todo”, em toda a grande tradição de pensamento ocidental é – nada mais, nada menos – do que a própria definição de espírito. Espírito, neste sentido, não é uma esotérica e misteriosa aura, mas simplesmente a capacidade de, a partir de uma determinada realidade concreta, indagar pela totalidade e pelo sentido. Se as diversas ciências se instalam em seus particulares pontos de vista (e é isso que as define como tais), isso não impede que, ao ensinar uma disciplina qualquer, devamos dispensar o diálogo – não só para a interdisciplinaridade e transversalidade – mas, na medida do possível, para o aprofundamento da realidade humana, a partir daquele tema concreto em sala de aula: da linguagem, da história, da matemática, ou do que for.
Assim, o espírito (que por definição se abre para o todo), para tomar um exemplo de Lauand, ao analisar as fórmulas de felicitações nas diversas línguas, não nos devemos limitar ao raso: parabéns se traduz em inglês por congratulations (em espanhol, por enhorabuena, em italiano, por auguri, etc.)
Para além de um rigoroso ensino técnico, o educador deve estar preparado para iniciar um diálogo de “abertura para o todo”, que se liga à Pedagogia da Admiração e da skholé. Um simples “parabéns” recolhe em si séculos de discussão teológica e profunda Antropologia Filosófica. Como resume Lauand:
“Com a encantadora forma nossa, ‘parabéns!’, estamos expressando precisamente isto: que o bem conquistado, que a meta atingida seja usada ‘para bens’. Em nossa herança cultural, do cristianismo medieval, o mal não tem existência própria, por si: ele é antes uma distorção do bem. E, como todo mundo sabe, qualquer bem obtido pode ser usado ‘para bens’ ou ‘para males’, pode contribuir para a autorrealização ou para autodestruição. Pensemos nos casos de um amigo que ganha a medalha de ouro em tiro ao alvo, ou se elege deputado, ou tira a carta de motorista, ou obtém o diploma de advogado… É evidente que essas conquistas – em si boas – podem também ser para males. Por isso também o dom fundamental da vida é celebrado nos aniversários com votos de parabéns…”
E distintas surpreendentes considerações antropológicas estão contidas também nas “correspondentes” fórmulas estrangeiras e podem ser acessadas em: <https://www.jeanlauand.com/RevelandoaLingPort.pdf>, p.335ss.
Outro exemplo, tomado do mesmo autor: ao estudar as equações algébricas, para além de ensinar a utilizar “formuletas”, como “menos b mais ou menos raiz quadrada do Delta, etc.”, o professor pode abrir uma profunda discussão histórico-teológica – da mais alta atualidade, envolvendo nada menos que as diferenças essenciais entre cristianismo e islamismo.
Provavelmente poucos sabem que a Álgebra está no centro da visão de mundo do Islam. Ela surgiu como ciência árabe para atender a uma exigência específica do Alcorão: o problema da herança. E revela a sólida união que se dá para os muçulmanos entre a ordem religiosa e a temporal. Assim, na questão da herança, o Alcorão (4, 11 e ss.) especifica detalhadamente como deve ser feita a partilha e diz, por exemplo: “Allah vos ordena o seguinte no que diz respeito a vossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas mulheres etc. etc.”. E conclui proibindo o mínimo afastamento dessas regras.
Bem diferentes são as coisas no cristianismo. Quando o mesmo problema da herança (para o muçulmano, sob a legislação direta de Allah) é proposto a Cristo, ele recusa-se a estabelecer concretamente os termos da herança: “Um da multidão” aproxima-se de Cristo e pede que use sua autoridade para convencer seu irmão a repartir com ele a herança (Lc 12.13). Cristo recusa-se terminantemente a intervir nessa questão: “Homem, quem me deu o direito de julgar ou de repartir propriedades entre vocês?” (Lc 12.14). O máximo a que Cristo chega é a uma condenação genérica da cobiça, contando a esses irmãos a parábola do homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto e com o célebre convite à contemplação dos lírios: “Olhai os lírios do campo…”.