O ser humano sempre vive e passa por diversas situações: tempos difíceis, sentimentos de culpa, doenças e muitas mágoas. E as perguntas continuam a serem feitas: por que isso acontece comigo? O que eu fiz para merecer tanta angústia? Será que ainda existe alívio e consolo no meu caso?
Esse tipo de questionamento sempre houve e sempre haverá, pois a realidade não pode ser negada: sofremos, necessitamos de consolo e encorajamento. Em razão disso, várias denominações religiosas se aproveitam das pessoas para fazer do consolo o seu “produto de mercado”, onde oferecem prosperidade, cura, paz, tudo em troca de bens e dinheiro. Muitos pregam e falam apenas o que as pessoas gostam de ouvir. Diante dessa realidade, há uma pergunta a ser feita: de acordo com a Palavra de Deus, esse é o verdadeiro consolo?
Bem, nesse contexto e no mês de aniversário da Confissão de Augsburgo (um dos documentos confessionais resultantes da Reforma), é bom abrirmos o nosso Livro de Concórdia (o conjunto das nossas confissões doutrinárias), mais especificamente sobre o artigo V da Fórmula de Concórdia, para vermos o que ele nos diz a respeito do que devemos anunciar. Os confessores afirmam “que a distinção entre lei e evangelho, como luz especialmente gloriosa, deve ser mantida com grande diligência na igreja”[1].
Infelizmente, muitas denominações religiosas caíram no perigo chamado Antinomismo. Antinomismo pode ser entendido de várias formas, mas no Artigo V ele possui um fundo histórico ligado a uma das Controvérsias da época (1527-1556) – de um grupo que quer defender a liberdade cristã eliminando inteiramente a pregação da Lei da igreja e do púlpito. Klug e Stahlke, de forma muito clara, explicam o que é antinomismo: “O significado fundamental de ‘Antinomismo’ é oposição à Lei. No campo teológico, esta ‘anti-Lei’ se opõe à Lei de Deus com uma força contínua na vida do crente. A teoria é que, uma vez que o homem tenha sido regenerado e chegado à fé, já não necessita dos mandatos e ameaças da Lei. A verdadeira contrição e arrependimento, mesmo o conhecimento do pecado, assim se pensa, é obra unicamente do Evangelho. Ao experimentar a bondade e a misericórdia de Deus, o regenerado tem motivo suficiente para sentir pesar por seus pecados e arrepender-se”[2].
A teologia bíblica não concorda com o antinomismo, mas cremos, ensinamos e confessamos que a Palavra de Deus se dá através da Lei e do Evangelho e assim deve ser mantido e pregado sempre na igreja, mas em ordem certa e com a devida distinção[3].
Para que serve a Lei?
Aprendemos no Catecismo Menor que a Lei serve para um fim triplo: 1°: Mantém a ordem e a honestidade exterior no mundo (freio); 2°: Ensina aos homens a reconhecerem os pecados (espelho); 3°: mostra ao regenerado quais são as boas obras (norma).
Para que serve a Lei? É uma pergunta ampla, mas aqui deve ser entendida como aquela que tem a função de ensinar ao povo a reconhecer a sua maldade (espelho).
Lutero, em uma de suas Conversas à Mesa, em 1541, relatou sobre o pecado original: “Nós teríamos uma vida bem-aventurada, se não fosse o pecado original. Nosso Senhor Deus diz: faça aquilo que lhe ordeno e deixe-me reger. Mas nós queremos ser Deus e queremos reger. Então por nossa causa e nossas ações, que toda a desgraça e tormento sobrevêm a nós”[4].
A Lei, além de mostrar que nada merecemos senão a condenação eterna, também nos diz que os sofrimentos da vida presente não são acidentes, mas o normal. Tudo o que a Lei (em um de seus usos) nos mostra é a realidade do ser humano, é o desespero.
Para que serve o Evangelho?
O Evangelho (a Boa Notícia) apresenta o Verbo Encarnado (Jo 1.14), pois ele é a promessa de Deus em Gênesis 3.15, que nasce para ser o Emanuel, o Deus Conosco, que vem com a missão de salvar e estar com o pecador destruído pela Lei.
Lei e Evangelho é pressuposto bíblico
Apenas um exemplo a ser citado é Paulo. A sua vida foi de sofrimento, e em 2Coríntios 11.24-28 ele descreve uma enorme lista das dificuldades que passou na vida, mas mesmo assim ele diz: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação. É Ele que nos conforta em toda a nossa tribulação…” (2Co 1.3,4a). Paulo, mesmo passando por momentos complicados, soube enfatizar a mão de Deus como a origem do verdadeiro consolo; ele sabia e sentiu na própria pele todo tipo de tribulações, mas ouviu de Deus: “A minha graça te basta” (2Co 12.9).
A grande verdade é que as pessoas olham para a Igreja em busca de consolo. Será que estamos levando consolo ou estamos piorando a situação?
Walther, em seu tempo, percebeu o que hoje ainda continua acontecendo na proclamação da Palavra de Deus. Ele diz: “O confundir Lei e Evangelho que é comum entre as seitas em nada mais consiste do que eles instruírem pecadores desesperados a conquistar seu caminho para a graça através de oração e luta interior, até que sintam a graça morando neles, em vez de levá-los à Palavra e Sacramentos”[5].
No momento em que Igreja faz isso (mistura, omite ou enfatiza mais Lei do que Evangelho), ela não é proclamadora do verdadeiro consolo que provém de Deus, pois está enfatizando a obra humana para alcançar a graça. Isso não é bíblico.
O papel da Igreja não é cair no antinomismo, não podemos descartar a Lei. Quando se entra no jogo do antinomismo, está se deixando de falar em pecado. Aí está o grande perigo, pois sem a doença, não há cura; sem a Lei, o Evangelho não tem sentido.
O papel da Igreja é jamais perder de vista as duas grandes verdades da Escritura: a absoluta perdição do ser humano (Lei), mas ao mesmo tempo a obra de Cristo em favor do perdido (Evangelho). O verdadeiro Evangelho não se destaca sozinho, mas se destaca a partir da Lei; somente se dá valor ao Evangelho quando se está sob o efeito pesado da Lei. Enquanto que a Lei mostra a doença e escancara quem realmente é o ser humano e o que ele merece (morte, desespero), o Evangelho dá a cura, o perdão e o consolo.
Cremos, ensinamos e confessamos a distinção entre Lei e Evangelho, pois “a tua ruína, ó Israel, vem de ti, e só de mim, o teu socorro” (Oséias 13.9). Sendo assim, o papel da Igreja não é o de pregar ou Lei ou Evangelho. Mas pregar ambos – Lei e Evangelho.
Leandro Born
Pastor da IELB em Nova Petrópolis, RS
Texto publicado no Mensageiro Luterano de junho de 2013
LIVRO DE CONCÓRDIA. Trad. Arnaldo Schüler. 5 ed. Porto Alegre e São Leopoldo: Concórdia e Sinodal, 1997, p.515 (#2).
[2] [2] KLUG, Eugene F; STAHLKE, Otto F. 1977,p.43. Texto original: “The root meaning of “antinomianism” is opposition to the Law. In the theological arena this “anti-Law” stance opposes the Law of God as a continuing force in a believer’s life. The theory is that, once a man is regenerate and has come to faith, he no longer has need for the Law’s punishing directives. True contrition and repentance, even knowledge of sin, so goes the thinking, are worked by the Gospel only. By experiencing the kindness and mercy of God the regenerate man is caused to grieve over his sins and repents.”
[3] LIVRO DE CONCÓRDIA. 1997, p.601 (#15).
[4] LUTHER, Martin. Tischreden. 1960, p.92.
[5] WALTHER, Carl F. W. A correta distinção entre lei e evangelho. Trad. Marie L. Heimann. Porto Alegre: Concórdia, 2005, p.144.