Nesta edição do Mensageiro Luterano, apresentamos a parte final da conferência de um dos maiores filósofos alemães contemporâneos, Josef Pieper (falecido em 1997), sobre o ato de crer e seu alcance antropológico.
Tendo mostrado a natureza do ato de crer e suas relações com o amar, Pieper finaliza com a análise das condições antropológicas para que se possa dar a fé na Revelação, não só como possibilidade teórica, um “teorema”, mas como profunda realidade vital para o ser humano que, atingido pela graça, permanece vigilante. Recorda que, mais do que a incredulidade, o inimigo do crer é o sufocamento da semente pela indiferença ou desatenção (uma desatenção a que nosso tempo não só nos convida, mas quase nos impõe…). Discute também a especificidade do autêntico “ser crítico” quando se trata do crer. E conclui com a consideração da especial situação do crer, no caso do intelectual.
“Para que se realize a fé em sentido religioso, quer dizer, na fala do Deus revelado, não se pressupõe só uma determinada concepção de Deus, mas, além disso, uma determinada concepção que o homem tem de si mesmo.”
Para estar preparado para o fato da revelação e da fé, deve o homem se conceber como um ser com especial abertura para Deus. Estou me referindo aqui não à “abertura – capacidade de receber”, que é no que se constitui a natureza do espiritual; penso, isso sim, na “abertura-franqueza” própria do ser-criado enquanto tal e assim também ao homem, que por ser criatura espiritual, tem – por assim dizer – “de nascença” esta especial abertura para o Criador, pela qual a criatura permanece plenamente disponível para ser moldada como “barro nas mãos do oleiro”, quer dizer, por natureza à espera de uma nova ação por parte de Deus. Ora, essa intervenção ocorre naquela forma vital que os teólogos chamam de graça, e ocorre também na forma de Revelação.
Mas naturalmente não é suficiente aceitar estas reflexões sobre a abertura criatural do espírito humano de modo puramente abstrato, como, por assim dizer, um teorema da antropologia filosófica ou teológica: isso não basta para que se torne esperável a fé na revelação como ato vital. Requer-se ainda mais a realização dessa abertura na qual, por exemplo, com o coração vigilante, se oferece resistência a um sem-número de possibilidades secretas disfarçadas, não declaradas, quase irreconhecíveis do fechar-se e da desatenção.
Nos Pensamentos de Pascal há um aforismo que nos faz compreender como é fácil que mesmo uma – como se diz – “boa consciência” possa também fechar-se contra o todo da verdade. Diz o aforismo: “Se não puserdes nenhum cuidado em conhecer a verdade, então achareis suficiente verdade no mundo para que possais viver satisfeitos. Mas se com todo o coração ansiais por ela, então não a há suficiente”.
Isso quer dizer que não é difícil tranquilizar-se com o que já se sabe; mas quem quer pôr o todo da verdade diante do olhar espera sempre uma luz nova além do que já sabe. A verdade é o todo, mas, afinal, eu em coisa alguma vejo o todo?
Neste ponto é preciso dizer uma palavra sobre uma forma muito especial de se ser “crítico”, uma forma diferente da atitude que no campo das ciências com razão se requer. Para o cientista, isto é, para aquele que procura respostas exatas para uma determinada questão, ser crítico é não admitir como válido o que não foi provado: não deixar passar nada. Mas para aquele que pergunta pelo “todo em conjunto”, pelo último significado do mundo e do existente – isto é, para o que crê, e também para o que filosofa – ser crítico é algo fundamentalmente diferente, a saber: com o máximo cuidado considerar o todo da realidade e da verdade e não omitir nada.
O cientista diz: “Não deixar passar”, o que filosofa e o que crê dizem: “Não omitir”, que nem o mais mínimo seja perdido, encoberto, esquecido ou escamoteado, mesmo que talvez nem seja exatamente observável ou comprovável.
Mas – poder-se-ia perguntar – e se alguém não pode, ou pensa que não pode, crer, ou simplesmente não quer crer? Ou formulado de modo diferente: Que dizer do tema da incredulidade?
Minha resposta seria algo assim como: antes de mais nada, muito cuidado com o termo “incredulidade”! Isso nos fará compreender o sentir da grande tradição teológica ocidental, e mais, esclarecerá o que sob o termo “incredulidade” há exatamente para ser entendido.
Tomemos o caso mais do que conhecido: alguém, sim, ouviu o anúncio da fé, mas esse anúncio não o atingiu (o que pode muito bem ocorrer). O ouvinte nem sequer percebe que poderia tratar-se, nesse caso, de algo que realmente lhe diz respeito ou talvez de uma notícia sobre-humana, fala de Deus, revelação e, compreensivelmente, não se efetua a fé. Mas incredulidade não é o nome certo para este não crer puramente fático.
Incredulidade, em sentido preciso, é somente o ato espiritual pelo que alguém conscientemente recusa aceitar uma verdade que o atingiu como verdade divina. Dir-se-á, talvez – e com razão –, que é algo extremamente raro de ocorrer. Pois em geral, o adversário da fé é na realidade menos a decidida incredulidade do que esta profunda e arraigada desatenção de que falamos e que a vida do nosso tempo tende não só a favorecer, mas quase a impor.
Para terminar, ainda uma palavra sobre a especial situação de quem tem formação científica, do homem de estudos, do universitário, do intelectual. Precisamente o “sábio” tem uma especial dificuldade para crer. Pois quem alcançou um certo grau de consciência crítica não se pode dispensar de refletir sobre os argumentos contrários, deve considerá-los. A verdade de fé não pode ser demonstrada por nenhum argumento de razão positiva. Isso determina irrevogavelmente a situação de quem crê e, na verdade, não só sua situação externa para a qual vale desde sempre a regra: “Quem vai debater sobre a fé não deve pretender demonstrá-la e sim defendê-la”.
Mas, também a sua situação interna é fundamentalmente a mesma: também contra os seus próprios argumentos de razão não há – em última instância – outra possibilidade de opor-se que a defesa; portanto, não o atacar, mas o resistir.
E a questão é se não se daria alguma vez o caso – por algum tempo pelo menos – da necessidade de que essa resistência aos argumentos internos, do mesmo modo que o testemunho de sangue, tome a forma de um padecer silencioso, certamente não por uma questão de rigidez de temperamento, não por “heroísmo”, mas sim para que não percamos o que na Revelação foi previsto para nós e que só sob forma de fé temos: a participação não só no saber de Deus mas também em sua própria vida.
No sentido religioso, portanto, crer é sobretudo ceder e não resistir diante de Deus; é não curvar-se sobre si mesmo, mas entregar-se à graça e ao amor divinos em confiança plena e irrestrita em todos os momentos da vida.