Fé e imigração

Em termos de igreja – IELB, os primeiros missionários vieram dos Estados Unidos, em 1900, para atender primeiramente os imigrantes alemães.

Várias comissões se organizaram para celebrar os 200 anos da imigração alemã no Brasil em 2024. Fui convidado a participar de um painel em minha cidade, Santa Cruz do Sul, RS, com o objetivo de fazer memória e resgatar os valores culturais e religiosos dos antepassados, trazendo-os para o contexto atual. Agradeço ao prof. Paulo Buss pela revisão histórica. Segue o texto apresentado no painel.

Sou filho de imigrantes tardios. Meus avós, Adolpho e Sofia Winterle, vieram ao Brasil em 1912, e meu pai, Léo, completou 4 anos no navio que os trazia de Bremen, Alemanha, junto com a terceira leva de imigrantes assentados no interior de Erechim, RS, então Paiol Grande. Eram todos teuto-russos, isso é, alemães que, devido à fome e outras razões, saíram da Alemanha para a Polônia, depois mudaram para a Volínia, hoje parte da Ucrânia, onde meu pai nasceu, perto de Kiev.

Trouxeram em sua bagagem, como a grande maioria dos imigrantes luteranos, a Bíblia, com anotações de toda a genealogia e filhos nascidos e falecidos; um livro de devoções, também com registro de nascimentos e falecimentos, ambos ainda em posse da família; o catecismo e o hinário.

O início não foi fácil, pois, ao cabo de seis semanas, faleceram três dos sete filhos que haviam vindo junto; e, em 1918, meu avô faleceu na epidemia de gripe espanhola. Minha avó, com muita determinação, criou os quatro filhos restantes. A religiosidade no lar era marcante e determinante para a educação dos filhos.

Logo acolhidos pela comunidade luterana que se formou com os imigrantes e engajados no trabalho, os dois filhos homens foram encaminhados pelo pastor local ao Seminário Concórdia, em Porto Alegre, RS. Meu tio, João Winterle, formou-se pastor, e meu pai, Léo Winterle, professor. Após 14 anos de magistério, meu pai voltou ao Seminário e se formou pastor. Devido à proibição da língua alemã durante a Segunda Guerra Mundial, teve que aprender português e se saiu muito bem nesse desafio.

Não se sabe de problemas de integração com a população indígena local em Erechim. A única informação que nos chegou é que o avô Adolpho aprendeu a tomar chimarrão com os índios e gostou muito. Isso mostra uma relação de boa vizinhança.

Minha avó manteve correspondência com os familiares que ficaram na Rússia até meados da Segunda Guerra Mundial. Na última carta que ela recebeu, os parentes diziam: “Os exércitos russos estão se aproximando”. Depois, silêncio. Todos os Winterles remanescentes foram mortos pelas forças comunistas.

Numa imigração mais tardia ainda, em 1932, veio uma leva de teuto-russos fugidos do regime comunista. Foram primeiro acolhidos pela China, onde ficaram dois anos. Num esforço de Sociedades Missionárias da Alemanha e dos Estados Unidos, foram trazidos ao Brasil e assentados no meio do mato em Iracema, na região de Mondai, SC. Devido às condições precárias que encontraram, a maioria abandonou as terras e mudou-se para as regiões de Ijuí, de Porto Alegre e de Canoas (bairro Niterói), RS. Um desses imigrantes, Ewald Rosin, casou-se com minha tia, Alzira Sander, irmã da minha mãe, Frida; e dois se tornaram meus cunhados: Harry Steinke, casado com a Else, e Hugo Wuerch, casado com a Dóra. Foram líderes na comunidade local e nas igrejas às quais se filiaram. Ouvi muitas histórias da Oma Clara Wuerch e li com muita atenção o livro Escapando do Paraíso Vermelho, escrito por minha congregada e amiga Érica Neumann, filha de um desses imigrantes fugitivos. Recomendo a leitura deste livro.

Em termos de igreja – IELB, os primeiros missionários vieram dos Estados Unidos, em 1900, para atender primeiramente os imigrantes alemães. Apesar do Sínodo Rio-Grandense, hoje Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), já estar atuando no estado, o número de pastores era insuficiente para atender a todos os núcleos de imigração. A LCMS – Lutheran Church-Missouri Synod, em sua Convenção em 1899, mostrou preocupação com os imigrantes alemães na América do Sul. Em 1900, enviou o pastor Broders como prospector para conhecer a realidade dos imigrantes alemães no Brasil. Pastor Broders fez contato com o pastor Brutschin, que morava em Novo Hamburgo e atendia Estância Velha, e havia feito contato com a LCMS. Pastor Broders achou que não valia a pena mandar pastores para a região do Vale do Sinos e arredores. Já pronto para embarcar de volta no porto de Pelotas, tomou conhecimento de núcleos luteranos no interior daquela região. Eram congregações chamadas “livres”, isto é, sem filiação a nenhum sínodo. Como estavam sem atendimento pastoral, o pastor Broders permaneceu durante algum tempo por lá, junto ao líder de um desses grupos, August Gowert. Organizou congregações, que chamaram pastores dos Estados Unidos. Já em 1903, antes mesmo da organização de um sínodo, um dos pastores, Hartmeister, começou com um seminário para a formação de pastores brasileiros. Em 1904, foi fundado o Distrito Brasileiro do Sínodo de Missouri, hoje, IELB.

Rudolpho Hasse e família

Já em 1918, o recém-formado pastor Rodolpho Hasse, filho de imigrante alemão, avô da minha esposa, Lídia, foi mandado como missionário para Lagoa Vermelha, RS, para trabalhar exclusivamente entre pessoas de fala portuguesa. Ele era casado com uma filha de portugueses, Carolina Gomes Soares, e dominava fluentemente o português. Acho que foi o primeiro pastor a casar fora do círculo alemão. Logo viu a necessidade de traduzir hinos, o catecismo e outra literatura para a língua portuguesa. Em 1930, o pastor Hasse foi enviado para começar o trabalho no Rio de Janeiro. De lá, visitou periodicamente São Paulo. Do Rio, começou também a missão em Belo Horizonte, na Bahia, no Recife, em Manaus… e foi até Portugal, onde fundou a Igreja Luterana Portuguesa. Não se esqueceu de contatar as famílias alemãs que encontrava em suas viagens missionárias. Acompanhou o desenvolvimento do rádio e viu nisso uma grande agência missionária. Em 1947, fundou a Hora Luterana, que completou 76 anos de atividades em abril último.

Enquanto isso, já em 1919, no extremo sul, interior de Canguçu, o pastor Augusto Drews começava a atender uma comunidade de negros na região de Manuel dos Regos. De começo, havia uma igreja para os negros e outra para os brancos. Recentemente, um negro foi eleito o presidente da igreja que era predominantemente branca. Muitos descendentes daqueles primeiros luteranos negros são fortes líderes em congregações da IELB em Rio Grande, Pelotas e no entorno de Porto Alegre. De Manoel dos Regos, veio o primeiro candidato negro a se formar no Seminário, o pastor João José Alves, em 1932.

Recuperei um pouco da memória da minha família e da minha igreja, a IELB no que diz respeito à imigração e à sua integração com os demais que compõem essa nossa bela pátria brasileira, sempre com o objetivo de vivenciar o evangelho de Jesus. Pois, afinal, CRISTO É PARA TODOS, sem distinção de origem, como lemos em Apocalipse 7.9: “Depois destas coisas, vi, e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos, e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação.”

RELATO DA VINDA AO BRASIL, ESCRITO POR ADOLPH WINTERLE

“No dia 12 de abril de 1912 iniciamos a nossa viagem ao Brasil, e chegamos no dia 2 de julho a Paiol Grande; isso foi para nós um tempo difícil e sofrido, pois viemos sem as mínimas condições, e 7 crianças pequenas e, ainda por cima, doentes, das quais 3 num período de 6 semanas foram chamadas pelo Senhor; isso é uma dor que não dá para descrever. Nós gostaríamos de ter voltado logo para a velha pátria, mas faltava dinheiro para tanto e assim tivemos que ficar aqui, e com a ajuda de Deus pegar firme no trabalho. E Deus o Todo-poderoso nos deu a sua bênção para isso, assim que nós não passamos fome. Mas o desejo de voltar para a antiga pátria está até hoje em nossos corações, e se for da vontade de Deus um dia ainda acontecerá.”

Sofia Winterle com os filhos João e Léo

Fontes de consulta

BUSS, Paulo W. Um grão de mostarda – A história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, Vol. 2. Porto Alegre: Concórdia, 2006.

Die Bibel. Uebersetzung: Martin Luther. J. G. Ancken Nachfolger. Kassel. (Em posse de Maria Regina Winterle)

MARQUARDT, Rony R. e WARTH, Carlos H. Crônicas da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Porto Alegre: Concórdia, 2006

NEUMANN, Erica M. Escapando do Paraíso Vermelho. 2.ed. Revista e ampliada. Porto Alegre: Concórdia, 2021.

REHFELDT, Mário L. Um grão de mostarda – A história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Vol.1. Porto Alegre: Concórdia, 2003.

WINTERLE, Adolph. “Relato da vinda ao Brasil”, em: Busse, Emil. Neue Hirten-Stimme (Familien Chronik), Berlin: Bartels [18..?] (Em posse de Léo Cristiano Winterle).

WINTERLE, Leo. Autobiografia. Santa Cruz do Sul, 1965. Publicada em edição limitada para a família, em 2022.

Acesse aqui a versão impressa.

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