A sombra da cruz no Menino Jesus

Durante os estudos do último ano do seminário, fui designado a estudar profundamente o texto de Isaías 62.10-12, que estava previsto para uma das celebrações natalinas que temos em nossas congregações e paróquias. Ao estudar o texto, assim como realizar algumas outras leituras e atividades que aconteciam em paralelo, pensei em meditar um pouco mais sobre o tempo de Natal.

As profecias que apontam para a vinda do Salvador Jesus já trazem elementos que nos lembram a cruz. Isso se reflete também na infância do nosso Senhor, quando encontramos elementos que remetem ao sofrimento, elementos que direcionam os nossos olhos para a Sexta-feira Santa. O propósito da vinda de Jesus ao mundo é muito claro: redimir a humanidade, quitar a dívida que os seres humanos têm com Deus, anunciar e conceder o perdão, levar embora o pecado do mundo. Esse propósito, não para a nossa surpresa, mas para a nossa admiração, já estava contemplado na vida do menino Jesus.

Como o texto de Isaías 62.10-12 é a base desta reflexão, inicio comentando sobre ele. “Eis que o Senhor fez ouvir até os confins da terra estas palavras: ‘Digam à filha de Sião: Eis que vem o seu Salvador; com ele vem a sua recompensa, e diante dele vem o seu galardão’” (Is 62.11). Para um povo que estava disperso, que aguardava com esperança a vinda do Redentor, o profeta transmite a ideia de que o salvador está diante dos olhos. O que pode nos parecer estranho é a recompensa que está diante desse salvador. Uma recompensa só pode ser conquistada por alguém que realizou alguma coisa. Diferente da herança, a recompensa é algo meritório. Então, o que fez esse salvador? Lendo outros capítulos de Isaías, olhamos para a cruz de Jesus, o Salvador. Em Isaías 52.13-53.12 temos um olhar antecipado, mas real, do caminho da cruz. O caráter cíclico da profecia mostra que a obra do Servo-salvador é a cruz, e a recompensa é levar junto o povo que estava distante de Deus para a vida que ninguém pode arrancar de nós.

A questão do sofrimento, no entanto, não se restringe ao profeta Isaías, sendo antecipada na primeira mensagem de esperança para a humanidade. “Então o Senhor Deus disse à serpente: – Por causa do que você fez, você é maldita entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Você rastejará sobre o seu ventre e comerá pó todos os dias da sua vida. Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela. Este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar” (Gn 3.14-15). Esse ferir se refere à morte. Desde que a morte entrou no mundo, o caminho da morte do Redentor passou a ser a única certeza de reconciliação com Deus. A cruz já estava presente na promessa.

Essa mesma cruz esteve presente, ainda que escondida, no sonho de José e no relato do nascimento de Jesus. Quando o evangelista Mateus narra a história do Natal pela perspectiva de José, ele relata toda a situação envolvendo Maria e o dilema em que José se encontrava. “Enquanto ele refletia sobre isso, eis que lhe apareceu em sonho um anjo do Senhor, dizendo: – José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria como esposa, porque o que nela foi gerado é do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e você porá nele o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.20-21). Por um lado, é importante lembrar que somente Deus pode perdoar os pecados; isso quer dizer que, ao falar de Jesus, o anjo está testemunhando que o menino que está sendo gerado na barriga de Maria é realmente o Deus encarnado. Por outro, não podemos esquecer que o perdão só é concedido, conforme nos ensina a Escritura, havendo derramamento de sangue. Por isso, o Filho de Deus, o Deus encarnado, precisa morrer para perdoar os pecados. Isso fica ainda mais claro porque o texto bíblico usa uma ênfase no anúncio do anjo a José; é como se estivesse escrito: ele, e somente ele, salvará o seu povo dos pecados deles. Porque uma vez que Jesus recebeu este nome, uma vez que ele foi chamado de Salvador, o Calvário e a cruz se tornaram inteiramente parte dele. E, quando a culpa é removida, o caminho da eternidade fica claro aos nossos olhos.

“Então Maria deu à luz o seu filho primogênito, enfaixou o menino e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7). No relato do Natal, há um elemento que pode parecer simples, mas, quando visto no todo do evangelho de Lucas, recebe um significado mais amplo. É de imaginar que Maria, ainda que fosse uma “mãe de primeira viagem”, cuidasse do pequeno Jesus. É muito provável, portanto, que ela tenha usado um lençol fino para enfaixar o recém-nascido. Alguns anos depois, lençóis parecidos voltaram a envolver o corpo do nosso Senhor. “E, tirando-o da cruz, envolveu-o num lençol de linho e o depositou num túmulo aberto numa rocha, onde ninguém havia sido sepultado ainda” (Lc 23.53). O evangelista Lucas transmite essa continuidade; panos que enfaixaram o menino-Deus recém-chegado também enfaixaram o homem-Deus crucificado. O testemunho bíblico revela, nos detalhes, a necessidade da morte, do caminho da cruz.

Outra informação que às vezes é esquecida é a própria manjedoura. “O anjo, porém, disse aos pastores: – Não tenham medo! Estou aqui para lhes trazer boa-nova de grande alegria, que será para todo o povo: é que hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto servirá a vocês de sinal: vocês encontrarão uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura” (Lc 2.9-11). Jesus foi colocado sobre a madeira da manjedoura, trabalhou com madeira junto com seu tutor, o carpinteiro José, e é colocado sobre a madeira da cruz. A madeira da cruz está com Jesus desde os seus primeiros dias de vida neste mundo. Isso mostra que a sombra da cruz já se projetava sobre o nosso Salvador muito antes dele iniciar seu ministério público na Galileia.

E, para fechar o presépio, mesmo sabendo que os viajantes do Oriente não encontraram Jesus na manjedoura, os presentes que os magos deixaram com Jesus também revelam a natureza da vinda do Verbo encarnado ao mundo. “Depois de ouvirem o rei, os magos partiram; e eis que a estrela que viram no Oriente ia adiante deles, até que, chegando, parou sobre onde o menino estava. E, vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo. Entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra” (Mt 2.10-11). Normalmente, os presentes que são trazidos pelos viajantes do Oriente são lidos à luz dos ofícios de Cristo: profeta, sumo sacerdote e rei; contudo, a mirra pinta como de intrusa. A Escritura testemunha que Jesus Cristo é o Sacerdote e o Sacrifício. A mirra nos lembra exatamente isso. João escreve: “E Nicodemos, aquele que anteriormente tinha ido falar com Jesus à noite, também foi, levando cerca de trinta e cinco quilos de um composto de mirra e aloés. Tomaram, pois, o corpo de Jesus e o envolveram em lençóis com os óleos aromáticos, como é costume entre os judeus na preparação para o sepultamento” (Jo 19.39-40). O presente levado ao menino Jesus esteve presente no seu sepultamento. O caminho da cruz já estava bem traçado e era visível desde que as profecias começaram. A sombra da cruz acompanhou Jesus na infância, mas especialmente no seu ministério.

Mesmo que a festa seja do menino Jesus, mesmo que a chegada do Salvador seja uma Boa Nova de grande alegria, o propósito da vinda de Cristo ao mundo envolvia a morte, e morte de cruz. A Escritura aponta para a cruz; é por isso que, mesmo na infância, vemos a sombra da cruz no menino Jesus. Sem a cruz, o Natal, por mais festivo que seja, perde o seu significado. Isso fica claro no texto bíblico, mas é sempre bom ser lembrado.

Para finalizar a nossa reflexão, deixo uma canção que escrevi para o dia de Natal. A melodia é conhecida, é a mesma do hino 119 do Hinário Luterano.

1. Foi no Natal que Cristo nasceu,

Deus se fez homem e a nós desceu.

O Salvador nasceu em Belém,

glórias a Deus, que quer nosso bem.

Refrão:

Nós celebramos o Cristo que vem.

Veio outrora, vem hoje também.

Oh! Vem agora em nós habitar,

em nossa igreja e em nosso lar.

2. Humilde veio, em berço banal,

Cristo Senhor, amor sem igual.

O Deus-menino lá de Belém

traz a esperança, que nos mantém.

Nós celebramos…

3. Ó bom Jesus, divino Senhor,

Rei prometido, meu Redentor.

Com os pastores vou te louvar

E com os magos te adorar.

Nós celebramos…

4. Ó meu Senhor, me leve também

a conhecê-lo, como convém.

Nas Escrituras posso te ver,

Nos sacramentos te receber.

Nós celebramos…

Renan Figur

6º ano teológico

Seminário Concórdia

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