Pr. Eliseu Teichmann
Londrina, PR
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Se você mora no Rio Grande do Sul, é quase certo que já tenha ouvido falar que agora em 2024 faz 200 anos da imigração alemã. Sim, foi em 25 de julho de 1824 que aportaram os primeiros imigrantes em São Leopoldo, RS, sendo instalados na Real Feitoria do Linho Cânhamo, constituindo o primeiro núcleo de colonização alemã no RS. Extraoficialmente, porém, já tinham vindo pequenos grupos anos antes, desde 1819, sendo instalados no Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia.
Na expansão das colônias no Rio Grande do Sul, destacam-se diversas fases, no mínimo três: 1824-1850, quando a expansão se deu, essencialmente, na periferia de São Leopoldo; 1850-1890, quando ocorreu a marcha para o Oeste: vale do Taquari e Vale do Rio Pardo. E também os primeiros núcleos no sul do Estado, tais como São Lourenço; e 1890 e seguintes, quando se deu o salto para a região do Planalto. Mas houve levas de imigrantes alemães vindos mesmo até por volta da metade do século 20, aí já especialmente em decorrência das grandes guerras mundiais.
Alguém escreveu: “Um povo sem memória histórica não sabe quem é, de onde vem, nem para onde vai; fica solto no espaço e no tempo, sem raízes que lhe deem apoio para firmar sua posição e sem a seiva vital que lhe vivifique a investida rumo ao futuro”. Sim, olhar para o passado nos ajuda a entender o presente e mesmo ajuda a planejar o futuro. Nesse sentido, acreditamos que este tema possa interessar a você por morar numa região marcada por descendentes de alemães, por ser descendente de alemães ou por fazer parte da Igreja Luterana seja no Brasil ou em outro lugar.
Como sabemos, a imigração alemã e a fé ou igreja luterana estão intimamente ligadas. Foi no contexto da imigração alemã que a fé luterana chegou para nós e se moldaram as igrejas luteranas: a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e a Igreja Evangélica do Brasil (IELB). Claro, vieram também alemães católicos e de outros grupos religiosos, mas predominaram os luteranos, vindo a igreja luterana por muito tempo a ser chamada de igreja dos alemães. Também contribuiu para essa visão o fato de as igrejas luteranas que se formavam não terem então preocupação missionária para alcançar outras etnias. Neste texto queremos falar das condições dos alemães na sua terra natal e as condições que encontraram aqui no Brasil, pois elas nos ajudam a valorizar a história desta gente e a compreender aspectos do luteranismo entre nós.
As condições na Alemanha
A imigração alemã no Brasil não foi uma escolha comum e simples como de muitas pessoas hoje que optam em morar em outro país por um tempo e, se não der certo, voltar para as origens. As condições empurraram essa gente para isso. Havia na Alemanha, e de certa forma em toda Europa, uma realidade econômica, social, política e até religiosa muito desfavorável para grande parte da população.
A historiadora Sandra Jatahy Pesavento destaca que no século 19, a Alemanha passava por uma profunda crise. O desenvolvimento do capitalismo em países como a Alemanha gerou um excedente populacional sem-terra e sem trabalho. A acumulação de capital, a concentração da propriedade do solo e a emergência da indústria tiveram, como contrapartida, a expulsão do camponês da terra e a desarticulação do trabalho artesanal. O estágio de desenvolvimento industrial não conseguiu absorver essa mão de obra excedente.
Acrescente-se um intenso crescimento da população, catástrofes naturais trazendo más colheitas e a conjuntura política desfavorável, quer por movimentos revolucionários, quer por processos de unificação nacional, quer pelas influências negativas decorrentes das Guerras Napoleônicas. A consequência última de tudo se mostrava, concretamente, numa situação em que a maioria da população vivia condições de grande miséria, sofrendo, pois, pela falta de terra, de emprego e de bons salários. Para buscar melhores condições de vida ou escapar literalmente da fome, o emigrante alemão dispôs-se a abandonar sua terra natal e estabelecer-se em terras distantes e desconhecidas.
No que se refere ao cenário religioso-cultural da Alemanha, temos, principalmente nas primeiras décadas do século 19, fortes movimentos de racionalização da fé, de supressão da confessionalidade, levando o Estado a adotar uma política de formar uma igreja reformada única – a união entre luteranos e reformados calvinistas – a chamada União Prussiana – decretada pelo rei Wilhelm Friedrich III, em 1817, por ocasião dos 300 anos da Reforma. Esta medida desagradou a muitos luteranos confessionais, fazendo com que fossem formadas igrejas independentes e levas de emigrantes para a Austrália e Estados Unidos, resultando, neste último, na formação da Lutheran Church-Missouri Synod (LCMS). No entanto, os alemães luteranos que vieram ao Brasil não foram movidos essencialmente por estas questões de intervenção na fé.
No campo filosófico reinava o Iluminismo, com uma visão de mundo não mais centrada em Deus, com base no racional e material, com a bandeira da liberdade individual – resultando numa cultura de crítica à tradição, à autoridade enquanto instituição divina, de combate às igrejas, luta contra a fé e aversão a padres e religiosos.
Por fim, uma característica da igreja na Alemanha do século 19 é que ela estava ainda bastante atrelada à sociedade agrária, servindo aos interesses da nobreza, não alcançando tão bem a classe mais popular. Os camponeses, por exemplo, não se sentiam devidamente amparados pela igreja. Viam mais a igreja como estando a serviço da classe dominante. Isto fez com que os imigrantes aqui chegados em grande parte estivessem receosos de serem novamente submetidos aos ditames da igreja, fazendo com que eles mesmos tomassem as rédeas administrativas dela, tirando poderes dos pastores e resistindo à igreja mais institucionalizada em sínodo.
As condições no Brasil
Se na Alemanha havia uma conjuntura desfavorável que impulsionava à emigração, havia por parte do Brasil um grande interesse neste contingente disponível na Alemanha, pois atendia à política de pós-Independência.
O Brasil, com exceção aos portugueses, estava fechado para todos os povos até a Independência, em 1822. A partir da Independência, houve interesse em fomentar o desenvolvimento do Brasil com a presença de outros povos. Assim, até mesmo começou a se aceitar não católicos. Embora as demais igrejas e religiões ainda seriam apenas toleradas, vindo a ter liberdade religiosa somente a partir da Proclamação da República em 1889.
Um dos aspectos centrais para a imigração no Brasil estava na necessidade de mão de obra. Em substituição ao braço escravo, a solução foi introduzir a mão de obra livre do imigrante para dar continuidade à produção da lavoura brasileira. No caso específico do RS, objetivava-se, diretamente, a ocupação das extensas áreas desabitadas e o aumento da produção de gêneros alimentícios que abasteceria o mercado nacional. Poderiam se acrescentar ainda outros fatores gerais do interesse nacional da imigração e colonização, como o branqueamento da raça, a eliminação de nações indígenas, a valorização fundiária, a construção e conservação de estradas, a formação do exército nacional e a criação de uma classe média brasileira.
De forma geral, muitas dificuldades marcaram o processo imigratório-colonizador e a vida nas colônias. Os imigrantes enfrentaram as dificuldades próprias do pioneirismo: a mata virgem, o clima, a língua, o isolamento nas colônias, a separação de muitos familiares, a saudade da Pátria. Outras crises e carências surgiram em virtude da má política imigratória com muitas promessas não cumpridas, inconstâncias jurídicas, desassistência de toda ordem: na saúde, na educação, no transporte; a não participação nos processos políticos por serem estrangeiros ou não terem renda mais elevada. Levou muito tempo – décadas – para se estabelecerem condições mais favoráveis e que trariam condições para um desenvolvimento consistente.
No campo religioso, a falta de liberdade religiosa até a República trouxe inúmeras restrições. Os locais de culto não podiam ter características de igrejas, como torre e sinos. Os casamentos entre os luteranos, ou mesmo mistos, com católicos, eram considerados nulos perante a lei, prejudicando os processos legais de herança de filhos nascidos destes casamentos. Os cemitérios públicos estavam reservados para os católicos, fazendo com que as comunidades religiosas luteranas tivessem seu próprio cemitério ao lado das igrejas.
Entretanto, os imigrantes não cruzaram os braços. As condições desfavoráveis, consequentemente, contribuíram para o surgimento de uma série de características na vida educacional e religiosa. Na área da educação, por exemplo, como não receberam apoio do governo, pois nem sequer havia um sistema de educação pública no país, sozinhos providenciaram ensino para seus filhos, construindo escolas e elegendo professores dentre os mais instruídos.
Pela falta de assistência oficial dos governos e mesmo das entidades eclesiásticas da Alemanha, os imigrantes e seus descendentes providenciaram sozinhos os recursos necessários para a prática de sua religião. Grupos e localidades constituíram comunidades religiosas e construíram suas igrejas. E pela falta ou raridade de pastores, estes, como os professores, também eram escolhidos do próprio meio – aos quais muitos chamaram pejorativamente de pseudo-pastores ou pastores-colonos.
Concluindo, os imigrantes e seus descendentes tiveram uma vida muito difícil. No entanto, não perderam a fé, antes, a fé os ajudou a prosseguir em meio às muitas e grandes dificuldades. A fé luterana foi preservada, e a igreja luterana sendo estruturada, dando origem aos sínodos que resultaram na IECLB e IELB e outras luteranas. Claro, essas condições dos imigrantes alemães lá e aqui geraram algumas características próprias da igreja luterana aqui em relação à igreja na Alemanha. Geraram também tensões relacionadas ao processo de constituição dos Sínodos, como pretendemos ver num próximo artigo.
BIBLIOGRAFIA
- DREHER, Martin Norberto. Igreja e Germanidade. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1984.
- HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. 4.ed. Porto Alegre: Ed. Concórdia, 1989.
- PESAVENTO, Sandra J. História do Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
- PRIEN, Hans-Jürgen. Evangelische Kirchwerdung in Brasilien. Gütersloh: Gütersloher Verlaghaus Gerd Mohn, 1989.
- ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969.
- TEICHMANN, Eliseu. As Comunidades-livres no Contexto da Estruturação do Luteranismo no RS. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo, EST, 1996.
Parabéns, pastor Eliseu! O resgate da história é uma homenagem e um reconhecimento aos nossos antepassados, que, diga-se de passagem, não tiveram uma vida fácil. Importante, nesse contexto, a formação de nossa Igreja. 👍👏🙏