Hora de partir

A importância da assistência espiritual no processo de lidar com a perda, seja ela esperada ou inesperada

Todos nós nascemos com uma única certeza: vamos morrer um dia. A geriatra, escritora, professora e palestrante Ana Claudia Quintana Arantes nos convida a refletir sobre os tabus e receios que permeiam essa etapa final da vida. Em seu livro, A morte é um dia que vale a pena viver, Ana Claudia instiga sobre nos prepararmos para esse momento, já que durante a vida nos planejamos para as possibilidades que ela pode proporcionar. “Sonhamos com nosso futuro e vamos à luta. Buscamos orientações para as coisas incertas. Não importa quantos anos viveremos, quantos diplomas teremos, qual o tamanho da família que formaremos. Com ou sem amor, com ou sem filho, com ou sem dinheiro, no fim de tudo, a morte, chegará. E por que não nos preparamos? Por que não conversamos abertamente sobre essa única certeza?” (Arantes, 2019, p.40-41).

Seja de forma súbita, acidental ou lenta e gradual, a morte traz dor e sofrimento para quem fica, mesmo quando dizemos: “Agora descansou”, quando vemos partir aquele ente querido depois de um longo processo de doença, por exemplo.

E há também o cuidado e o preparo para quem sabe que sua hora está chegando e que irá deixar aqui as pessoas amadas, seus bens, seu presente e seu futuro – ao menos seus planos. O fato é que todos nós passaremos por ela ou acompanharemos a morte de quem amamos.

No mês em que lembramos o Dia de Finados, a reflexão sobre o luto se torna ainda mais relevante. O processo de lidar com a perda, seja ela esperada ou inesperada, é um desafio que exige apoio e acompanhamento. Para entender melhor como a espiritualidade pode auxiliar nesse momento, conversamos com os pastores Guinter Hervella e Elbert Jagnow, que compartilharam suas experiências sobre o atendimento pastoral em situações de luto e doença.

Com uma longa caminhada na assistência espiritual no cuidado com paliativos (que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida), ambos reforçam a importância da assistência espiritual tanto para pacientes com doenças graves como para seus familiares. E consideram que a espiritualidade pode ser um grande consolo e oferecer um sentido de propósito em momentos de grande sofrimento.

Ao compartilhar sobre os desafios enfrentados nesse atendimento, os pastores elencam como lidar com o sentimento de culpa, a angústia e a morte assistida. No entanto, eles também observam as recompensas de acompanhar pessoas em momentos tão delicados e a importância da fé como fonte de esperança.

O fato é que o luto é uma experiência universal, mas cada pessoa o vivencia de forma única. A espiritualidade pode ser um grande recurso para encontrar conforto e significado nesse processo. Assim, além do cuidado pastoral em momentos de dor e perda, uma rede de apoio contribui para o acolhimento e acompanhamento dos enlutados.

ENTREVISTA

CADA PESSOA TEM UMA MANEIRA DE PASSAR PELO LUTO, É POR ISSO QUE NÃO EXISTE UMA RECEITA PRONTA DE COMO ATENDER OS ENLUTADOS”

PASTOR GUINTER HERVELLA

Como a morte súbita, como em um acidente, afeta os familiares?

A morte súbita ou por acidente, em muitos casos, traz o sentimento de culpa, de várias maneiras. Lembro de uma senhora que visitei, ela tinha demandas psicológicas muito fortes; depois de algumas conversas, pudemos chegar à raiz. Há alguns anos, ela havia pedido para seu esposo ir comprar algumas coisas no mercado, e, quando ele estava voltando, foi atropelado. Aquela senhora carregava a culpa dessa morte já há 20 anos. Outras vezes, as pessoas sentem-se culpadas por terem brigado, e a outra pessoa sai de viagem e termina sofrendo um acidente e morre; não houve tempo de pedir perdão.

Quais os desafios como pastor, nesses casos?

Acredito que a primeira coisa é buscar entender o que realmente está acontecendo. É o momento em que o pastor tem que se esvaziar de qualquer tipo de julgamento. Algumas vezes, o pastor sente-se quase que numa obrigação de falar algo que vá fazer a pessoa se sentir melhor, mas nem sempre precisamos falar, a presença é o que faz a diferença. Lembro que cada pessoa tem uma maneira de passar pelo luto, é por isso que não existe uma receita pronta de como atender os enlutados.

Qual o papel do pastor no processo de luto?

O papel do pastor é bastante amplo, dar consolo, escutar, ser uma presença ativa.

Quais são as ferramentas e recursos que o pastor pode utilizar para ajudar os enlutados?

Vejo que o maior recurso é a escuta ativa. Essa escuta consiste em observar cada expressão, cada fala em entrelinhas. Não há como ajudar alguém sem antes escutar tudo o que ela tem para falar. A partir daí podemos usar um texto bíblico e fazer uma oração, pois sabemos o que esses enlutados estão precisando.

Como construir uma rede de apoio para os familiares?

Uma das maneiras de construir essa rede de apoio é dando cursos de capacitação para os congregados; deveríamos ter mais pessoas capacitadas dentro das congregações. O risco sempre é ter pessoas despreparadas no momento de dor. Há pouco tempo tivemos um acidente aéreo, as famílias estavam sofrendo por causa deste acidente, e teve uma pessoa que disse assim: “Era a hora deles, não adianta ficar chorando agora”. É esse tipo de coisa que devemos evitar, por isso vejo a necessidade de ter pessoas realmente treinadas para estarem com a família nesse momento.

ENTREVISTA

 “DEUS USA SEUS INSTRUMENTOS, MESMO FRAGILIZADOS PELA DOENÇA, PARA TESTEMUNHAR”

PASTOR ELBERT JAGNOW

Quais são os principais cuidados espirituais oferecidos aos pacientes e seus familiares?

A primeira coisa a ser lembrada, quando estamos diante de uma pessoa que tem a sua vida ameaçada por uma grave doença, é saber que estamos diante de um ser humano que está cuidando do seu corpo, porém tem seu lado psicológico, social e espiritual. E nesse momento, na maioria das vezes, o lado espiritual passa a ser muito mais valorizado que quando tudo estava bem com sua saúde física. Por isso, a assistência espiritual é muito importante e deve ser oferecida e disponibilizada para esses pacientes. Quando alguém vive este momento de adoecimento, pode ser algo transformador e resultar em crescimento para sua fé em Cristo, como também pode ser desesperador e angustiante. O que não podemos ignorar é o fato que Deus não criou o ser humano para a morte, e isso causa medo e provoca questionamentos.  

Quais são os desafios enfrentados pelos pastores nesse contexto?

Um dos fatores que causa muita angústia é o sentimento de culpa e de não ser merecedor do perdão. O ideal, nesse momento, é podermos estar ao lado do paciente para ouvir seu relato sobre esse sentimento de culpa e lhe apontar o verdadeiro perdão, o alívio eterno oferecido por Cristo. A maior parte de pessoas que encontro nos hospitais é de que, em algum momento, esteve diante da mensagem do perdão, a maioria batizada e que já frequentou alguma igreja cristã, mas que está afastada. Para essas pessoas, a enfermidade acompanhada da assistência espiritual, passa a ser uma oportunidade de se reaproximar de Deus, e, muitas vezes, a única e última oportunidade. É ali que entra a nossa responsabilidade como igreja, de estarmos muito mais presentes e usar essas oportunidades para oferecer e ser a mensagem do perdão pela fé em Cristo.

Quais são os dilemas enfrentados pelos pastores quando esses pacientes vêm à óbito?

Nós, pastores, ou pessoas que acompanham pacientes graves, não podemos esquecer que também somos seres humanos com sentimentos e emoções, e, muitas vezes, somos confrontados com situações que nos fazem lembrar de experiências por nós vividas. Esse momento poderá nos levar a nos emocionarmos. Quero aproveitar aqui para dizer que isso não é errado e não é sinônimo de fraqueza. Existe uma questão cultural: a ideia de chorar diante de alguém é algo que não deve acontecer. Emocionar-se diante de alguém normalmente demonstra empatia, compaixão e amor. Não há nada de errado nisso. É lógico que não posso ser “uma manteiga derretida”, porém podemos chorar com quem chora.

Como a fé pode ajudar os enfermos a lidar com a finitude e a dor?

Algo que observamos muito é que o cristão ativo e com sua fé firmada enfrenta com muito mais tranquilidade o fato de estar diante da morte, pois a sua esperança não se limita às coisas deste mundo. Preocupa-se sim, em deixar a “casa” em dia e com quem fica. Para que esse paciente possa ficar mais tranquilo, reafirmamos estarmos ao lado dos seus queridos, para que possam trilhar o mesmo caminho de fé e estarmos juntos no céu.

Como a medicina e a religião podem trabalhar em conjunto para oferecer um cuidado integral ao paciente?

Com o avanço da medicina, há uma maior preocupação com o conforto e bem-estar físico do paciente, e isso possibilita cuidar melhor das questões psicológicas e, principalmente, espirituais que o paciente e seus familiares estão enfrentando. Portanto, há um avanço crescente nessa interação e trabalho conjunto nesse cuidado integral.

Quais são os desafios da comunicação entre profissionais de saúde e pastores?

Ainda há muitos ruídos na comunicação entre profissionais da saúde e assistentes espirituais, e isso se deve ao fato do não entendimento e reconhecimento da importância da espiritualidade no cuidado. Felizmente isso está mudando. Precisamos ter incursão respeitosa e aproveitar as oportunidades para mostrar cientificamente que a espiritualidade é fundamental no cuidado integral.

Como construir uma rede de apoio para os pacientes e seus familiares?

Como capelão e assistente espiritual, atendo em Porto Alegre, RS, pessoas não luteranas de outras localidades. Precisamos nos preocupar em melhorar a continuidade do atendimento dessas pessoas ao retornarem para suas casas.

Tem alguma história marcante ou desafiadora que gostaria de compartilhar?

Quando falo em aproveitar oportunidades quero me referir a uma situação recente: Um paciente que questionava por que “Deus o mantinha nessa situação”, que seria melhor que ele o levasse, pois estava fazendo a esposa sofrer e que não tinha mais sentido e motivos para estar vivo. Não sabia ele que no mesmo quarto estava um paciente angustiado, que precisava amputar uma das pernas e que estava atento ao comportamento e atendimento espiritual que ele recebia. Esse outro paciente, em meio à sua angústia, solicitou que eu orasse por e com ele. Resumindo: ali começou um atendimento que até hoje continua. O paciente fez a cirurgia de amputação e hoje manifesta sua gratidão e fé no Salvador Jesus. Deus usa seus instrumentos, mesmo fragilizados pela doença, para testemunhar.

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