Casamento de Lutero e Catarina há 500 anos e os nossos casamentos

Elmer Flor, DTh,
pastor e professor luterano emérito pela FELSISA,
igreja luterana irmã na África do Sul

        Em 13 de junho ocorre o 5º centenário de casamento de Martinho Lutero e Catharina von Bora. Será feriado na cidade de Lutero, Wittenberg (Lutherstadt Wittenberg), Alemanha, cenário central da Reforma Luterana. A Igreja Luterana dará a devida importância a essa data, porque ela representa um marco na sua história e um dos alicerces da Reforma, por algumas razões que alinhamos a seguir. Por mais contraditório que seja esse acontecimento, foi um marco no enfrentamento de tradições e dogmas da igreja daquele tempo, como o celibato clerical, o sistema monástico e o matrimônio como sacramento.

        O celibato na Igreja Católica não tem origem nas primeiras práticas cristãs, cujos ministros eram predominantemente casados. No século XII, durante o Segundo Concílio de Latrão, foi estabelecida a regra que invalidava o casamento de padres que eram casados e estabelecia o celibato, medida que até hoje impede o casamento de padres e freiras. Esse foi um importante ato de enfrentamento que Lutero provocou com seu casamento. Encorajou os padres a se casarem, mostrando que não havia conflito entre sua vocação e o casamento. Denunciou o celibato, culpando-o por encorajar a luxúria em vez de ajudar a castidade. Com seu casamento, Lutero elevou esse estado civil e a vida familiar a um lugar de respeito e honra na igreja e na sociedade.

      Outra instituição rígida na igreja da idade média foi o sistema monástico. Pais entregavam seus filhos ou filhas ainda muito jovens a um mosteiro para receberem uma educação secular e, acima de tudo, religiosa, do melhor nível, para seus filhos. Em consequência, os jovens eram submetidos desde cedo ao rigor da vida monástica. Era uma época em que a vida de solteiro e o celibato eram celebrados como formas de atingir um estado mais elevado de espiritualidade. No início de 1521, Lutero emitiu o escrito “Sobre os votos monásticos”. Na prática, ele se empenhou em resgatar dos mosteiros – às vezes, em fugas secretas – freiras que decidissem abandonar a vida em clausura. Encaminhava as fugitivas de volta a suas famílias ou na busca de emprego e até mesmo do casamento.

      Lutero foi mais específico ao editar o tratado: “Que virgens possam, em conformidade com a vontade de Deus, abandonar o convento”. Este e outros escritos de Lutero chegaram aos mosteiros, e não só despertaram o interesse de monges e freiras, como também causaram verdadeira reviravolta em sua aceitação dos votos assumidos. Em consequência, no mês de abril de 1523, doze freiras fugiram do mosteiro de Nimbschen, numa carruagem coberta, escondidas entre barris de peixes, até Wittenberg. Lutero apoiou essa fuga. Três delas retornaram a suas famílias, mas as outras nove foram acomodadas em casas de amigos. Catharina Von Bora, uma delas, ficou na casa do pintor e farmacêutico Lucas Cranach.

      Catharina Von Bora nasceu em 29 de janeiro de 1499, filha de uma família nobre da Saxônia que havia empobrecido. Sua mãe faleceu cedo e, por razões de ordem econômica, cultural ou religiosa, seu pai, depois de novo casamento, a entregou aos cuidados do convento beneditino de Brehna. Aos 10 anos, o pai a transferiu para o convento sistersiniano de Nimbschen, para receber uma educação que ele não tinha condições de lhe dar e ou também para dedicá-la ao serviço de Deus. Aos 16 anos, ela fez os votos monásticos, como freira, assumindo viver em castidade, pobreza e obediência. Ao fugir, nove anos depois, amparada nos escritos de Lutero, teve de conviver com acusações do tipo: “Você quebrou o voto de castidade que fez no convento com o noivo Jesus Cristo…”. Mas nada disso impediu que essa mulher forte e ousada se tornasse a primeira-dama da Reforma. Enfrentou perigos, inclusive de morte, mas assim mesmo, assumiu que a salvação é por graça e fé, e pode ser vivida fora dos muros de um convento.

O CASAMENTO

     Martinho Lutero, assim como muitos de seus amigos, inicialmente não tinha certeza se deveria se casar. Temia pela própria vida, vítima da excomunhão papal e do proscrito decretado pelo imperador em Worms. A isso acresce que a Alemanha estava no meio da Guerra dos Camponeses, o que só agravava a situação já perigosa de Lutero. Líderes camponeses usavam os escritos dele fora de contexto e se revoltavam em seu nome. Os nobres também foram alvo de muitas críticas suas e poderiam, a qualquer momento, mandar executá-lo. Lutero estava bem ciente desses acontecimentos. Filipe Melanchthon, seu colega mais próximo e confiável, acreditava que o casamento poderia prejudicar a Reforma, causando escândalo. Mas Lutero acabou decidindo que seu casamento “agradaria seu pai, irritaria o papa, faria os anjos rir e os demônios chorar”.

      Treze de junho de 1525. O casamento de Martinho e Catharina se deu em cerimônia simples, cercado por amigos próximos e familiares. Não foi precedido por muito namoro e era muito improvável que ele estivesse apaixonado por Catharina. O amigo e colega Johannes Bugenhagen, pastor da igreja da cidade em Wittenberg, oficiou o enlace. Foram padrinhos o pintor Lucas Cranach e sua esposa, o colega Justus Jonas e o advogado Johann Apel. O evento causou admiração geral, de modo que Lutero teve que explicar que, se não tivesse sido mantido em segredo, todos iriam desaconselhá-lo. Com a presença de seu pai na cerimônia, restabeleceu-se um relacionamento que havia sido conturbado anos antes, quando Lutero se rebelou contra a vontade do pai, de que o filho estudasse advocacia, e foi parar no convento.

      Após o casamento, ele escreveu: “Deus quis e causou meu ato, pois eu não amo minha esposa nem ardo por ela, mas a estimo muito”. Lutero pode não ter se apaixonado por sua esposa antes do casamento, mas ele passou a amá-la profundamente e eles desfrutaram de uma vida feliz de casados juntos. Käthe, como a chamava na intimidade, foi responsável por trazer estabilidade à vida de Lutero e possibilitar que ele se transformasse na figura que foi. Catharina foi uma personagem indispensável e valiosa da Reforma. Da rudeza no convento à fuga e aos mais de vinte anos de matrimônio com Lutero, os biógrafos narram a vida dessa extraordinária camponesa do século XVI e mostram que, passados 500 anos, Catharina ainda é surpreendente e relevante – e sua personalidade única permanece moderna mesmo nos dias atuais.

A VIDA FAMILIAR

     Lutero e Catharina foram casados por 21 anos e oito meses, e apesar da diferença de idade de 16 anos, eles desfrutaram de uma vida familiar frutífera e satisfatória. Lutero acreditava firmemente que a mão de Deus estava em seu casamento e ele via o casamento como uma forma de se vingar do diabo, pois sabia muito bem que o diabo desprezava o casamento. Em uma carta escrita em 1526, Lutero elogiou sua esposa: “Minha Käthe é, em todas as coisas, tão prestativa e agradável para mim que eu não trocaria minha pobreza pelas riquezas de Creso”. Os ensinamentos de Lutero eram tão radicalmente diferentes das visões católicas tradicionais de seus dias, que a igreja ficou furiosa com ele e tentou quase tudo em seu poder para silenciá-lo. Lutero é conhecido principalmente por sua visão sobre justificação, mas seus ensinamentos sobre casamento e família também têm sido muito valorizados.

     Em duas décadas de casamento, o casal teve seis filhos: Hans (1526), Elizabeth (1527), Magdalena (1529), Martin (1531), Paul (1533) e Margaretta (1534). Magdalena faleceu aos 13 anos de idade, causando profundo pesar na vida da família. A vida do reformador não se restringiu à Teologia, mas também experimentou tempos amargos na área psicossocial. Sua rejeição do celibato como uma forma de espiritualidade superior, sua elevação do casamento e da vida familiar à arena da espiritualidade, suas visões moderadas sobre o divórcio são hoje comumente aceitas entre a comunidade cristã.

     Lutero restaurou o casamento e a vida familiar de volta à arena da espiritualidade e respeitabilidade na sociedade. Ao casar-se, Lutero viveu seu próprio conselho, vivendo uma vida conjugal exemplar. O que tornou Lutero tão eficaz foi a intensidade apaixonada com a qual ele defendeu essas reformas. Ele escreveu e falou com tanto poder e apoiou suas palavras com uma vida tão ousada e corajosa, que, embora vivendo à sombra de ameaças constantes, séculos após sua morte, o poder e a convicção de suas ideias ainda ressoam com grande força.

CASAMENTOS HOJE

     Casamentos e famílias hoje estão enfrentando uma pressão crescente por causa do estresse da vida moderna. As taxas de divórcio entre cristãos são iguais às entre grupos seculares. Lares cristãos estão sendo desfeitos e interrompidos em uma taxa alarmante. A mídia e as redes sociais contribuem para desestabilizar a vida matrimonial. Os casamentos estão em níveis historicamente baixos. As pessoas estão se casando mais tarde ou simplesmente não estão se casando ou se envolvendo em outros arranjos de vida alternativos.

    Durante longo tempo da era cristã antes da Reforma, o casamento e a família eram desencorajados e até mesmo denegridos. As relações sexuais eram condenadas e associadas ao mal do pecado original. O celibato e a vida de solteiro eram exaltados como um estado mais elevado e sagrado de espiritualidade. Somente com a Reforma, o casamento e a família foram restaurados a um lugar de honra dentro da comunidade cristã. Cabe-nos examinar as visões e experiências de Lutero em relação ao casamento e à família. Precisamos colher, de sua sabedoria, percepções que nos permitirão fortalecer o casamento e a família na sociedade atual. Lutero recolocou o lar no centro da vida afetiva. Seus ensinamentos e práticas eram tão radicais e de tão longo alcance, que alguns estudiosos argumentam que, além da igreja, o lar foi a esfera da vida que a Reforma afetou mais profundamente.

OS NOSSOS CASAMENTOS

     A data festiva dos 500 anos do casamento de Martinho e Catharina Lutero deve levar-nos a reavaliar as uniões matrimoniais na igreja luterana hoje. Também somos fortemente assediados pelas ondas de desprestígio do casamento, de propaganda negativa e de oportunidades à separação e ao divórcio. É hora de retomarmos o caminho indicado pela Reforma Luterana. Queremos sugerir alguns passos na celebração do evento em foco:

1. Relembrar com gratidão a coragem com que o reformador enfrentou os desmandos religiosos e sociais de seu tempo, direcionando as nossas orações para o agradecimento a Deus pela bênção de um casamento preservado de influências do mundo.

2. Revisar os nossos casamentos à luz deste passo na vida do reformador. Programe um culto, nos próximos meses deste ano, em que o foco seja a renovação dos votos matrimoniais (“renewal of oaths”), como se costuma fazer no mundo cristão de tempos em tempos.

3. Buscar suporte nas promessas divinas de fortalecimento da vida familiar à luz de exemplos bem-sucedidos, como o de Lutero, sua esposa e seus seis filhos. E cantar com o padre Zezinho a Oração pela família (1995): “Que nenhuma família termine por falta de amor… E que os filhos conheçam a força que brota do amor”!

Comentários

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Matérias Relacionadas

Juventude Luterana: Um século de história, fé e serviço

Fotos: Wilhelm Falkenstein Texto: Lara SilvaJornalista e vice-presidente de Educação  da JELB A Juventude Evangélica Luterana do Brasil (JELB) celebra um marco histórico...

Veja também

Juventude Luterana: Um século de história, fé e serviço

Fotos: Wilhelm Falkenstein Texto: Lara SilvaJornalista e vice-presidente de Educação ...

INTERVALOS BÍBLICOS NAS ESCOLAS PÚBLICAS

Teste à laicidade colaborativa e o papel do luteranismo na defesa da liberdade religiosa

Berço da JELB celebra centenário com culto especial

Programação em Nova Hartz contou ainda com inauguração de placa comemorativa