Comer é algo tão natural que nem sempre nos damos conta de que há milhões de pessoas no mundo privadas deste ato essencial para viver. Em 2009, estudando o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) o tema recebeu um novo sentido para mim, além daquele que a Bíblia já revela. Aprendi que comer é um direito de cada pessoa, pelo simples fato de ser humana. A comida, o oxigênio e a água são elementos sem os quais não há vida. Os que não creem na Bíblia dizem que estes elementos são dádivas da natureza. Nós, cristãos, reconhecemos que são criação e dádivas de Deus para uma vida abundante (Gn 2.15).
O pecado impôs a fadiga e a disputa pela sobrevivência. Hoje o alimento é comércio lucrativo e causa da morte de milhares de pessoas. A falta de comida mata gente pobre, e a ganância das grandes corporações e indústrias alimentícias, que buscam o lucro a qualquer preço, sem se importar com a qualidade dos alimentos e a saúde dos consumidores, vem matando gente de todas as classes sociais. Recentes denúncias de adição de ureia ao leite, são apenas um exemplo. A busca desenfreada da riqueza coloca em risco a vida de pessoas inocentes, em sua maioria crianças e idosos, no caso do leite.
A fome não se dá por falta de alimento. Um terço do alimento produzido no mundo é desperdiçado. Enquanto isso, 860 milhões de pessoas sofrem com a falta de acesso à alimentação. Considerando também a qualidade do que se come, o número de pessoas em insegurança nutricional quase dobra. No conceito de insegurança está presente o uso indiscriminado de veneno na produção de alimentos, que já tirou a saúde de milhares de trabalhadores da agricultura e é uma das maiores causas de doenças que afetam a humanidade. O Brasil é um dos “paraísos” do uso de veneno. Tecnicamente, os venenos são chamados de defensivos agrícolas ou agrotóxicos, mas como diz o agrônomo e professor universitário Rubens Onofre Nodari: “Na verdade, todo veneno deveria ser proibido. Compostos que são desenvolvidos para matar não fazem parte da ética da vida. Quem defende a vida não pode ser favorável ao uso de sustâncias que a comprometem”.
O assunto não é novo. Em 1946, Josué de Castro, pernambucano de Recife, médico e pesquisador da vida das classes operárias, lançou o livro A geografia da fome, denunciando que a fome não tem sua origem na explosão demográfica nem na sazonalidade da produção, mas ela é política, fruto da concentração de renda em detrimento da exclusão de grande massa da população. Segundo Josué de Castro, “existem duas maneiras de morrer de fome: não comer e definhar de maneira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências ou deficiências específicas, capaz de provocar um estado que pode também conduzir à morte”.
O dia 16 de outubro é o Dia Mundial da Alimentação. A data é celebrada desde 1981 (hoje em 150 países) com o propósito de conscientizar a opinião pública sobre as questões da nutrição e da alimentação no desenvolvimento dos países. A data marca a fundação da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (1945), hoje presidida pelo brasileiro professor José Graziano da Silva. A FAO escolhe temas anuais, sendo 2014 o Ano Internacional da Agricultura Familiar. O pesquisador e engenheiro agrônomo José Esquinas Alcázar, há 30 anos colaborador da FAO, apresenta sua proposta para avaliação de desenvolvimento, como segue: “Um país desenvolvido é aquele que apresenta SEDA – Sustentabilidade, Ética, Diversidade e Amor. Apenas com base nestes parâmetros, diz ele, será possível direcionar a Terra. Para isso, devemos ter consciência do que consumimos, do que incentivamos e do que aceitamos. É preciso transformar nosso carrinho de compras em um carro de combate”, provoca Alcázar, pois “Comer é um ato político”.
Escolher alimentos também é um ato político
No grego, políticos é uma pessoa que se preocupa consigo e com os outros. Podemos escolher a partir do processo de produção dos alimentos. Podemos decidir não consumir produtos que em sua origem agridem a natureza ou exploram trabalhadores; podemos decidir não consumir produtos que em sua cadeia produtiva usam venenos. E mais do que isso, podemos decidir pela alimentação produzida a partir de processos sustentáveis, que respeitam a natureza, oriundos da agricultura familiar, sem agrotóxicos, sem exploração de trabalhadores, através de sistemas de reaproveitamento e manejo da água.
Nesta hora, a agricultura familiar precisa ser valorizada. Não se trata simplesmente de pequenos agricultores, mas de uma produção agrícola, florestal, pesqueira, pastoril ou aquícola gerida e operada por mão de obra familiar, que não usa agrotóxicos nem fertilizantes químicos, realizando o manejo da terra, o respeito à biodiversidade, garantindo as sementes tradicionais e crioulas, e a conservação dos biomas naturais na produção.
Cerca de 70% dos alimentos que vão para a mesa vem da agricultura familiar. Entre eles os alimentos de produção orgânica, que seguem a produção sem tóxicos. Estes produtos podem custar mais, pois sem o uso de adubos químicos, a recuperação da terra se dá em processo mais lento, e o controle de organismos que atacam a produção é feita de forma natural, sem tóxicos, através de ervas e compostos naturais.
Precisamos saber o que comemos, e nada melhor do que produzir em casa, especialmente aquilo que consumimos in natura, em particular, as folhagens. É possível produzir seus alimentos agroecológicos, mesmo na cidade. Este é o conceito de agricultura urbana e periurbana. Outra iniciativa que existe é a de ter o agricultor ou feirante de quem compramos as hortaliças, do mesmo modo como temos o dentista ou o médico preferido.
No Brasil, o conselho que se ocupa com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) é o CONSEA – Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional – que também está sendo organizado em cada município. A presença das igrejas é esperada na sua composição. Vale a pena a nossa Igreja marcar presença. Por articulação do CONSEA, no dia 06/02/2010 a alimentação tornou-se direito fundamental, incluído no Artigo 6 da Constituição.
A Igreja é instrumento de Deus na sociedade. Ela não pode ficar alheia ao que acontece com o ser humano e com toda a criação de Deus. Temos responsabilidades especiais no cuidado da criação, especialmente da criatura feita à imagem e semelhança de Deus – o ser humano. Garantir alimentos saudáveis e acessíveis a todos é um caminho. Não vamos deixar de doar alimentos, mas é bem mais duradouro garantir meios para todos terem o seu próprio alimento.
Fontes de consulta:
www.fao.org
www.planalto.gov.br/consea
www.josuedecastro.com.br
*Texto publicado no Mensageiro Luterano em outubro de 2014.