Mulheres com nome e sem nome, mas mulheres com voz

Existem vários livros sobre “Mulheres da Bíblia”, e neles aparecem mulheres com nome (como Rute e Ester) e mulheres que são anônimas, ou seja, em que se diz apenas “uma mulher”. Neste estudo vou dar destaque a mulheres que aparecem no Primeiro Livro de Samuel, no Antigo Testamento. Algumas são chamadas pelo nome, outras aparecem sem nome, mas fica claro que elas têm voz. Elas se fazem notar!

No entanto, meu enfoque não será do tipo “mulheres exemplares, cujo exemplo se pode ou se deve seguir”. Existe espaço para esse tipo de estudo? Existe, sim. Afinal, personagens bíblicos podem servir de modelo em diferentes vocações, segundo enfatiza o Artigo 21 da Confissão de Augsburgo. Ali se ensina que a Bíblia não autoriza a invocação dos santos ou a busca de auxílio junto a eles. No entanto, também se ensina que “devemos lembrar-nos deles (dos santos, isto é, dos fiéis do passado), para fortalecer a nossa fé ao vermos como receberam graça e foram ajudados pela fé; e, além disso, a fim de que tomemos exemplo de suas boas obras” (Hinário Luterano, p.87).

Foco no evangelho

Em geral, o estudo de personagens bíblicos acaba tendo esse viés de “lei”, ou seja, busca-se um exemplo ou modelo a ser imitado. E onde fica o evangelho? O evangelho aparece quando deixamos de olhar para os personagens bíblicos como modelo de alguma coisa (confiança em Deus, integridade pessoal ou cuidado do próximo) e entendemos seu lugar e seu papel no propósito de Deus. O evangelho aparece quando, em vez de “personagens bíblicos”, focalizamos a pessoa mais importante que aparece na Bíblia, que é Deus. Quem olha para os personagens individualmente em busca de modelos (que nem sempre são encontrados) terá um enfoque de lei. Quem focaliza a pessoa mais importante da Bíblia, que é Deus, verá que esses personagens estão conectados com o propósito de Deus, expresso no ponto de vista adotado pelo narrador da história bíblica.

Um bom exemplo disso é Sansão. (E peço licença para inserir um exemplo masculino num texto dedicado a personagens femininos.) Como modelo de moralidade, Sansão é um péssimo exemplo. A certa altura (Jz 16.1), ele passa a noite com uma prostituta! E quem ousaria dizer que devemos imitar o que ele fez quando incendiou os trigais dos filisteus, prendendo tochas de fogo no rabo de raposas (Jz 15.4)? Hoje, se ninguém protestasse em nome dos vizinhos atingidos, logo surgiria alguém para erguer a bandeira do direito das pobres raposas! Mas, se levarmos em conta que Sansão é um juiz (isto é, um libertador a serviço de Deus), veremos que, por mais estranho (e bárbaro!) que tudo aquilo nos pareça, essas ações estão alinhadas com o evangelho (os propósitos salvadores de Deus) e distantes de nós na esfera da lei (um modelo de vida para nós). Sansão não aparece na Bíblia para que imitemos o que ele fez; ele aparece na Bíblia para que a gente saiba o que Deus fez por meio dele, por mais estranho que tudo aquilo nos pareça!

A ênfase dos livros de Samuel

Para entendermos o que várias mulheres dizem e fazem dentro da narrativa de Samuel, é preciso levar em conta a situação daquela época e o objetivo dos livros de Samuel. Aquele era um período de transição. Samuel, que era sacerdote e profeta, foi também o último dos juízes ou libertadores do povo de Israel. Com Samuel deu-se a transição para a monarquia: Israel passou a ter o seu primeiro rei, Saul. Mas Saul não chegou a formar uma dinastia, pois logo foi substituído por Davi. A dinastia de Davi atravessa o Antigo Testamento, indo até o exílio babilônico. Mais tarde, essa dinastia foi retomada e chegou a seu ponto alto no Rei dos reis, no Novo Testamento. Assim, os livros de Samuel destacam o tema da realeza e querem estimular o povo a ser leal à dinastia do rei Davi. Faz sentido esperar que as mulheres que aparecem nesses livros tenham algum papel relacionado com realeza e com a dinastia de Davi. É o que nos cabe verificar, no estudo que segue.

Ana em 1Samuel 1—2

Quem não se lembra de Ana, a mãe de Samuel, com sua oração e seu voto? Conhecido é também o cântico de Ana (1Sm 2), em que essa mulher sofrida se alegra em Deus. Ela confessa que “não há rocha como o nosso Deus” (v.2). Um pouco adiante (v.4), Ana reconhece as reviravoltas promovidas por Deus, dizendo que “o arco dos fortes é quebrado, porém os fracos são revestidos de força”. Séculos depois, esse texto viria a inspirar o cântico de Maria, a mãe de Jesus (Lc 1.52). No entanto, o que nem sempre se nota é a voz profética de Ana, anunciando a chegada da monarquia. No final de seu cântico, como ponto alto, ela anuncia que o Senhor Deus “dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido” (1Sm 2.10). Neste ponto, mais do que modelo de piedade, Ana é proclamadora do evangelho!

As moças junto à fonte em 1Samuel 9

No capítulo 9 do Primeiro Livro de Samuel, aparece o primeiro encontro entre Saul e o profeta Samuel. Quando estavam à procura de umas jumentas que se extraviaram, Saul e um servo do pai dele foram falar com o “homem de Deus”, a saber, Samuel. Ao entrar na cidade onde ele morava, encontraram umas moças que estavam a caminho da fonte para buscar água. As moças são anônimas. Quem se importaria com o nome de cada uma delas, naquele grupo? Perguntadas a respeito da presença de Samuel na cidade, elas responderam com um “sim”. Mas não se limitaram a isso, pois explicaram que o povo iria oferecer um sacrifício no lugar alto (1Sm 9.12). E então acrescentaram algo aparentemente banal: “Porque o povo não comerá enquanto ele (Samuel) não chegar, porque ele tem de abençoar o sacrifício, e só depois os convidados irão comer” (v. 13b). Embora pareça banal, esta é uma fala cheia de significado e conotação profética. A fala é importante em função do que viria a acontecer com Saul, mais adiante, no capítulo 13. Ao contrário do que o povo daquela cidade fez, a saber, esperar a chegada do sacerdote, Saul não soube esperar e ofereceu sacrifícios. Por “avançar o sinal”, Saul perdeu a dinastia (1Sm 13.13-14). Não foi por falta de aviso, ainda que indireto. As moças junto à fonte bem que haviam falado! Também neste caso não há nada a ser imitado, porque as moças estão a serviço do evangelho.

O bloco das mulheres em 1Samuel 18

Em 1Samuel 17 aparece o relato da famosa luta entre Davi e Golias. No capítulo seguinte, o narrador relata que, quando todos estavam voltando para casa, depois de Davi ter matado o filisteu, “as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tamborins, com alegria e com instrumentos musicais” (1Sm 18.6). O cântico das mulheres surpreende. Diz o narrador que as mulheres se alegravam e, cantando alternadamente, diziam: “Saul matou os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares”. Saul ficou indignado com a letra da música. Ele disse: “Para Davi elas deram dez milhares, mas para mim apenas milhares. Na verdade, o que lhe falta, a não ser o reino?”. E o reino de fato viria a ser de Davi. O bloco das mulheres, com voz profética, antecipou esse fato.

Abigail em 1Samuel 25

A história de Abigail é bem conhecida. Ela, mulher e, depois, viúva de Nabal, o tolo (1Sm 25.25), é descrita como “inteligente e bonita” (1Sm 25.3). A inteligência dela aparece no momento em que consegue apaziguar Davi, impedindo que o futuro rei se vingasse com as próprias mãos. Acontece que Nabal havia ofendido Davi, negando-lhe a tradicional hospitalidade. Mas não podemos ignorar o que Abigail diz, na longa e respeitosa fala em que se dirige a Davi. Abigail torna-se anunciadora do reinado de Davi, ao dizer: “E, quando o SENHOR Deus tiver feito a meu senhor todo o bem que falou a seu respeito e o tiver colocado como príncipe [rei] sobre Israel, então meu senhor não terá motivo de pesar ou de remorso por ter derramado sangue inocente” (1Sm 25.30-31). Abigail não informa quando Deus havia falado bem a respeito de Davi e prometido que o faria rei, mas ela mesma se torna proclamadora desse reinado futuro! (Olhando para isso da perspectiva do Novo Testamento, pode-se dizer que Abigail, junto com as demais mulheres, “promoveu Cristo”, como diria Lutero.)

A médium de En-Dor em 1Samuel 28

A mulher anônima mais famosa (mas pouco lembrada, por razões um tanto óbvias), em 1Samuel, é a médium ou necromante de 1Samuel 28. O texto não é fácil. Aparece em todas as listas de “dificuldades bíblicas”. Não quero (nem posso) resolver todos os “problemas” dessa narrativa. O texto fica muito mais difícil quando se faz perguntas que ele não se dispõe a responder. (Trata-se de um episódio único, e em momento algum se dá a entender que isso é algo que deva ser repetido.) O texto é menos difícil quando se respeita aquilo que parece ser a intenção do narrador, que em momento algum apresenta a mulher de forma negativa ou censura o que ela faz a pedido de Saul, que é o verdadeiro “bandido” dessa história. O texto é menos difícil quando se percebe a ironia (aparentemente não intencional) da narrativa. Eis algumas das ironias: o mesmo rei que havia desterrado os médiuns e os adivinhos (v.3) pede que se procure uma médium (v.7); o desobediente Saul, que tinha ouvido que rebelião e feitiçaria eram parte de um mesmo pacote (1Sm 15.23), acaba acrescentando o pecado da feitiçaria ao pecado da rebelião (ver também 1Cr 10.13); o rei decadente fez um juramento usando o nome do mesmo Deus ao qual ele ousava desobedecer (1Sm 28.10); Saul afirma que “Deus” (um termo mais genérico) não lhe dava resposta (v.15) e acaba ouvindo que o SENHOR (o nome pessoal de Deus) tinha se tornado inimigo dele (v.16)!

Uma importante questão a ser respondida é como as palavras de Samuel (já morto) chegaram aos ouvidos de Saul. Aceito a tese de que isso se deu por meio da mulher de En-Dor, que, desta forma, entra na lista das mulheres que “têm voz”, em 1Samuel. Saul foi perguntar no lugar errado e acabou ouvindo o que não queria. A pergunta do rei era “o que devo fazer diante da ameaça dos filisteus” (v.15), mas essa pergunta não foi respondida, porque, afinal, não havia nada a ser feito. Saul teve de ouvir a mesma mensagem: “o SENHOR… rasgou das suas mãos o reino e o deu a alguém outro, que é Davi” (v.17). É a mesma mensagem que, de modo geral, é anunciada por todas essas mulheres, anônimas ou com nome, que aparecem em 1Samuel.

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