1.700 anos do Concílio Ecumênico de Niceia

Data é celebrada no dia 12 de junho

Rev. Filipe Schuamabach Lopes
Pastor da IELB
Caxias do Sul, RS

Hoje, 12 de junho, a Igreja Luterana lembra e dá graças a Deus pelo grande Concílio Ecumênico de Niceia, em 325 d.C.

No dia 20 de maio de 325, um evento histórico e marcante para toda a cristandade teve início: o Concílio de Niceia. Convocado pelo imperador Constantino, foi o primeiro concílio ecumênico da história da Igreja, ou seja, uma assembleia universal que reuniu líderes de diversas regiões do mundo cristão. Realizado na cidade de Niceia, na atual Turquia, o concílio foi um marco na luta da Igreja pela preservação da fé apostólica diante de falsos ensinamentos que ameaçavam o coração do evangelho.

Estima-se que cerca de 300 bispos estiveram presentes, vindos da Europa, da África e da Ásia. Muitos desses pastores do rebanho de Cristo traziam no corpo as marcas das perseguições que haviam sofrido, pouco tempo antes, por causa da fé. Agora, pela primeira vez, eles se reuniam em paz, com o apoio do imperador, para tratar de algo que não dizia respeito à política, mas à essência da fé cristã: quem é Jesus Cristo?

A razão principal do Concílio foi o combate à heresia de Ário, presbítero de Alexandria, que ensinava que o Filho de Deus não era eterno como o Pai. Ário afirmava que o Filho, por ter sido gerado, não poderia ser coeterno nem da mesma essência divina. Em suas palavras: “houve um tempo em que ele (o Filho) não existia”. Essa heresia ficou conhecida como arianismo.

Segundo Ário, Jesus Cristo foi criado por Deus antes do tempo, como a primeira criatura, e foi exaltado por graça e adoção. Para ele, Cristo não era Deus verdadeiro, mas uma criatura superior, não gerado da essência do Pai, mas feito “em vista da criação”. Esse pensamento negava a divindade plena do Filho e colocava em risco toda a doutrina da salvação, pois se Jesus não é verdadeiro Deus, então sua morte e ressurreição não poderiam salvar a humanidade.

Em oposição a esse ensino, o bispo Alexandre, de Alexandria, com o apoio firme de seu jovem diácono, Atanásio, defendeu que o Filho é gerado eternamente do Pai, da mesma essência (em grego: ousia) e, portanto, é Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. O Filho não é criado, mas gerado de forma misteriosa, sem divisão ou diminuição, e sempre existiu com o Pai.

Outro erro teológico também rondava as discussões da época: o modalismo, que negava a distinção entre as pessoas da Trindade. Para os modalistas, Pai, Filho e Espírito Santo não são três pessoas distintas, mas apenas modos ou formas diferentes que Deus assumia. Ou seja, o mesmo Deus que se manifestava como Pai no Antigo Testamento, depois apareceu como Filho na encarnação, e depois como Espírito Santo. Essa doutrina confundia as pessoas da Trindade e negava a relação eterna entre elas. O Concílio também rejeitou essa visão, afirmando com clareza que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas distintas, mas da mesma essência divina.

No Concílio, com a participação de figuras como Eusébio de Cesareia, Marcelo de Ancira e Eustáquio de Antioquia, chegou-se à formulação de uma confissão de fé clara e ousada. O que hoje conhecemos como Credo Niceno começou a ser redigido ali. Nele se afirmava: “[Cremos]em um só Senhor Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os mundos, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, de uma só substância com o Pai”. A palavra grega usada foi homoousios, que significa “da mesma substância”. Essa expressão foi escolhida para deixar claro que o Filho não é inferior ao Pai, mas é eterno, verdadeiro Deus com o Pai.

Embora esse termo já tivesse sido usado anteriormente por hereges modalistas com outro significado, o Concílio o recuperou com novo sentido, deixando claro que se tratava da essência comum da Trindade, e não da confusão das pessoas. O termo homoousios seria depois rejeitado por muitos no Oriente por parecer ambíguo, mas foi defendido com firmeza por Atanásio e mais tarde retomado com precisão pelos grandes teólogos capadócios: Basílio de Cesareia e Gregório de Nazianzo, que distinguiram claramente entre “essência” (ousia) e “pessoa” (hipóstase).

Além da confissão de fé, o Concílio também condenou abertamente os ensinos de Ário, declarando anátema todo aquele que dissesse que “houve um tempo em que o Filho não existia”. Também tratou de diversas questões práticas da vida da Igreja, como a ordenação de ministros, a celebração da Páscoa e a reconciliação de cristãos que haviam caído na perseguição. Essas decisões ficaram registradas em cânones, que deram início ao que mais tarde seria conhecido como Direito Canônico.

Entre os nomes lembrados com carinho, está São Nicolau de Mira, famoso por sua generosidade e que deu origem à figura do Papai Noel. Embora a história de que ele teria esbofeteado Ário durante o concílio provavelmente seja uma lenda posterior, ela simboliza a paixão de muitos em defender a verdadeira fé cristã.

Mais do que um momento isolado da história, o Concílio de Niceia estabeleceu um modelo: diante de dúvidas e heresias, a Igreja se reúne, examina a Escritura, confessa publicamente a verdade recebida dos apóstolos e rejeita o erro com clareza. Foi o início de uma tradição conciliar que permanece até hoje, especialmente nas igrejas que prezam pela ortodoxia da fé.

E qual é o impacto disso tudo na nossa vida hoje, como cristãos luteranos?

A fé que confessamos em nossos cultos, especialmente quando dizemos com toda a Igreja o Credo Niceno-Constantinopolitano, tem suas raízes nesse concílio. O que começou em Niceia foi retomado em Constantinopla (381), reafirmado em Calcedônia (451), e chegou até nós como um precioso tesouro da Igreja cristã. Esse credo nos lembra de que a fé cristã é uma só, em todos os tempos e lugares. Ao recitá-lo, confessamos:

Creio em um só Deus, Dt 6.4; Jo 14.1       

Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, 2Pe 1.17; Ap 4.8; Gn 1.1,8; Jr 51.15

tanto das coisas visíveis como das invisíveis. Gn 1.31; Cl 1.16

E em um só Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus1Co 8.6; Jo 3.16,18 

nascido do Pai antes de todos os mundos, Hb 1.2,5

Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, Jo 1

gerado, não criado, de uma só substância com o Pai, Jo 10.30

por quem todas as coisas foram feitas; Jo 1.3

o qual por nós homens e pela nossa salvação desceu do céu 1Ts 5.9; Jo 6.38

e se encarnou pelo Espírito Santo na virgem Maria e foi feito homem; Lc 1.35;

foi também crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, Mc 15.15

padeceu e foi sepultado;1Co 15.3-4a

e ao terceiro dia ressuscitou segundo as Escrituras, 1Co 15.4b

e subiu aos céus, e está sentado à direita do Pai, At 2.33-34; Hb 1.13

e virá novamente em glória a julgar os vivos e os mortos, Mt 25.31; 2 Tm 4.1

cujo Reino não terá fim. Lc 1.33

E no Espírito Santo, Senhor e Doador da vida, Jó 33.4

o qual procede do Pai e do Filho, Jo 15.26

que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado; Jo 4.24

que falou pelos profetas. 2Pe 1.25

E numa única santa Igreja Cristã* e Apostólica. Mt 16.18; Ef 2.19-20 

Confesso um só batismo para remissão dos pecados, Ef 4.5; At 2.38

e espero a ressurreição dos mortos1Co 15.21-22

e a vida do mundo vindouro. Amém. [1]Ap 22

*Cristã: o texto antigo diz “católica”, referindo-se à Igreja inteira enquanto confessa a totalidade da doutrina cristã.

Esse credo, junto com o Credo dos Apóstolos e o Credo Atanasiano, não é apenas uma bela expressão de fé pessoal. Os credos são a posse estimada de toda a Igreja ao longo das eras e não são apenas a expressão de um único indivíduo. A Igreja manteve a confissão desses credos com firmeza e, muitas vezes, até sofreu martírio em vez de negá-los. Por isso, o uso dos credos cristãos históricos é uma parte muito importante da liturgia do culto luterano.

Como sabemos que declarações pessoais e individuais de fé muitas vezes estão sujeitas a confissões imprecisas e até errôneas, desencorajamos o uso de declarações informais de fé no culto público da Igreja. Os credos servem como uma maneira de garantir que a Igreja continue a crer no que a Palavra de Deus ensina. O tesouro da verdade contido na Escritura é o que desejamos confessar e sustentar como Igreja. E, com base nessas verdades, conforme expressas no credo, o povo de Deus é conduzido a servi-lo em palavras e ações.

Quando confessamos o credo, seja ele Niceno, Apostólico ou Atanasiano, estamos confessando a fé da Igreja cristã. Fazemos isso com alegria e com confiança. Com essas palavras em nossos lábios e em nossos corações, temos a certeza de que estamos devolvendo a Deus as verdades que ele nos falou primeiro. E assim, com a fé firme na Palavra segura do Senhor, dizemos com reverência e certeza: “Isso é verdadeiramente verdade”.

ORAÇÃO DO DIA

Senhor Deus, Pai Celestial, no primeiro Concílio Ecumênico de Niceia, a tua Igreja corajosamente confessou que crê em um só Senhor Jesus Cristo, como sendo de uma só substância com o Pai. Dá-nos coragem de confessar a fé salvadora com tua Igreja por todos os séculos, através de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.

BIBLIOGRAFIA

GONZÁLEZ, Justo L. Uma história ilustrada do Cristianismo. Vol. 2. São Paulo: Vida Nova, 1995.

IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL. Culto Luterano: liturgia e orações. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2014.

PADOVESE, Luigi. Introdução à teologia patrística. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004.

TREASURY of Daily Prayer. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2009.

WEEDON, William. Celebrating the Saints: The Feasts, Festivals, and Commemorations of Lutheran Service Book. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2016.


[1] O texto do Credo Niceno acima é o atualmente utilizado na liturgia da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. O texto conforme o Livro de Concórdia é o seguinte:

“Creio em um só Deus, o Pai onipotente, criador do céu e da terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis.

E em um só Senhor Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus e nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai, por quem foram feitas todas as coisas; o qual, por amor de nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, e encarnou, pelo Espírito Santo, na Virgem Maria, e se fez homem; foi também crucificado em nosso favor sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado; e ao terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras; e subiu aos céus; está sentado à destra do Pai, e virá pela segunda vez, em glória, para julgar os vivos e os mortos; e seu reino não terá fim.

E no Espírito Santo, Senhor e vivificador, o qual procede do Pai e do Filho; que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado; que falou pelos profetas.

E a igreja, una, santa, católica e apostólica.

Confesso um só batismo, para remissão dos pecados, e espero a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro. Amém.”

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