Prof. Dr. Clóvis Jair Prunzel
Seminário Concórdia
São Leopoldo, RS
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Introdução
Nos próximos dias, você poderá assistir ao filme A Redenção – A História Real de Bonhoeffer, em cartaz nos cinemas brasileiros. No original inglês, o título é diferente: Bonhoeffer: Pastor. Spy. Assassin (Pastor. Espião. Assassino. Em tradução livre). Antes de ter a oportunidade de assistir à produção cinematográfica, sugiro acompanhar algumas informações sobre a vida e a obra de Dietrich Bonhoeffer, a qual recebeu muitos impulsos do pensamento de Martinho Lutero.
A vida e a obra
A vida e a obra de Dietrich Bonhoeffer precisam ser lidas e interpretadas em três grandes contextos.
O primeiro deles envolve o período em que a Alemanha era um império. O segundo, após a queda da monarquia, envolve a República de Weimar, após a Primeira Guerra Mundial. O terceiro período envolve o Terceiro Reino, quando Adolf Hitler assume a Alemanha, tornando-a nazista. O primeiro período encerra em 1918. O segundo período vai até 1933. O terceiro engloba os anos de 1933 a 1945.
Nascido na cidade de Breslau, Alemanha, no dia 4 de fevereiro de 1906, Bonhoeffer é filho de uma família de classe média alta da sociedade. Aos 17 anos, surpreende os pais ao se decidir pelo estudo da Teologia.
A formação teológica começa em Tubingen, próximo a Berlim, e é concluída em Nova Iorque, no seminário Batista Union Theological Seminary. A tese de doutorado tem o título de Comunhão dos Santos, que ele defende em Berlim, em 1927. Em 1930, candidata-se a assumir uma cátedra na Universidade de Berlim, no curso de Teologia. Já em 1931, envolve-se no movimento ecumênico ao assumir a secretaria da Aliança Mundial para a Promoção Internacional da Cooperação entre as Igrejas. O pós-doutorado ocorre em Nova Iorque, em 1931. Por várias vezes, na década de 1930, assume o trabalho paroquial em cidades como Barcelona (Espanha), Berlim e Londres (Inglaterra). Em 1933, participa, com Hermann Sasse, teólogo luterano hoje considerado a maior expressão luterana confessional do século 20, na elaboração da Confissão de Betel. Em 1934, está na organização da preparação da Confissão de Barmen, que reúne os teólogos reformados e luteranos que pertenciam à Igreja Estatal Alemã. Em 1939, envolve-se em um movimento contra o socialismo alemão. Toma partido dos judeus, sendo responsável direto por auxiliar na fuga de judeus para a Suíça. É preso, por ordem de Hitler, em 1943, e, um dia antes da queda de Hitler, no dia 9 de abril de 1945, é executado.
Entre as obras de Bonhoeffer, precisamos destacar alguns textos importantes e que podemos ler em português. Em 1931, publica Ato e Ser. Em 1934, Criação e Queda. Em 1937, Discipulado. Vida em Comum é de 1938. Ética é publicada depois de sua morte, em 1949, assim como Tentação, em 1953. Essa produção segue os caminhos biográficos das experiências teológicas de Bonhoeffer.
Ênfases teológicas de Bonhoeffer
A produção teológica de Bonhoeffer é, antes de tudo, uma resposta às suas angústias. Ele mesmo afirma isso quando escreve a um amigo em 1944: “Talvez fosse tudo que escrevei destinado mais a mim, a fim de esclarecê-lo melhor, do que para ti… mas eu não posso deixar de te fazer participar das minhas ideias, simplesmente porque ainda não se tornaram claras para mim mesmo” (Seibert, p.3).
Apresentamos, agora, os principais destaques no pensamento teológico de Bonhoeffer.
A Ética, de Bonhoeffer, é um legado interessantíssimo para os teólogos posteriores. A tese principal da ética estabelecida é que a vontade de Deus remete a uma ação concreta. “Para Bonhoeffer, a ética não pode ser uma ética dos princípios ou das normas, que é preciso primeiro formular e fixar para depois aplicar e estender a realidade. O objetivo da ética não é o conhecimento do bem e do mal, baseado em princípios e normas, e sim o discernimento da vontade de Deus em vista da ação concreta” (Gibellini, p.111).
Este pressuposto é bem fácil de perceber na própria vida de Bonhoeffer. Quando os judeus são objeto de perseguição por parte de Hitler, ele mesmo se envolve auxiliando na fuga de muitos deles para a Suíça. Ecoando ideias de Lutero, que deixa o mosteiro para assumir uma responsabilidade pública, Bonhoeffer afirma que a Igreja pode perguntar ao Estado se sua ação é justa e, desta maneira, devolver ao Estado a responsabilidade de examinar suas ações à luz desta reprovação. A igreja pode ajudar as vítimas de uma ação injusta do Estado e, desta maneira, aliviar as consequências piores que podem advir de uma lei injusta. A Igreja também pode ter uma ação política direta se tem plena certeza de que o Estado está faltando em seu dever de manter a lei e a ordem.
Parece bem simples para Bonhoeffer abrir mão dos princípios éticos em favor de uma necessidade de se agir através do amor cristão. Temos uma certa ética da responsabilidade no pensamento de Bonhoeffer, na qual tem-se uma ação responsável através de uma liberdade responsável. Como cristão, tenho que oferecer minha própria vida em uma ação responsável pela obra de Deus por mim.
Aqui se aproximam duas ideias fundamentais no ensino de Bonhoeffer: a da vontade de Deus presente nesta vida e a reunião ou reconciliação de toda a criação com Deus. Dá-se a impressão que Bonhoeffer perde o chão, em outras palavras, traz o céu para a terra. Esta visão libertadora irá motivar outras teologias como a Teologia da Libertação. O discurso inflamado de Bonhoeffer com palavras como as que seguem foram utilizadas por teólogos latino-americanos a proclamar uma teologia da presença. Brada Bonhoeffer: “Temos irmãos e irmãs em nosso povo e em todos os povos. Não esqueçais. Aconteça o que acontecer, nunca esqueçamos, que o povo de Deus é um povo cristão, e que, se estamos unidos, não pode prosperar nem o nacionalismo, nem o ódio de raças ou classes sociais.”
Essas ideias são fáceis de serem encontradas nas suas obras. Em Vida Comum, afirma que “nenhum deve procurar os seus próprios direitos; se o forte cai, o fraco deve guardar o seu coração de sentir prazer maligno na sua queda; se o fraco cai, o forte deve bondosamente ajudá-lo a levantar-se” (p.255). Nas cartas da prisão, publicadas em Resistência e Submissão, assume que a única forma de vencer o mal é com uma ação responsável. “Na limitação do que é do nosso dever jamais chegamos ao risco da ação resultante da responsabilidade pessoal, a única que pode atingir o mal no centro e vencê-lo. O homem do dever, afinal de contas, terá de cumprir sua obrigação até com o diabo” (p.17). Na sua obra póstuma, que contém fragmentos em forma de artigos, de seus pensamentos, a Ética apresenta elementos da ética responsável: liberdade e representação, conformidade com a realidade, aceitação da culpa, liberdade, entrega da ação e a busca por sentido, espaço de responsabilidade baseada na lei natural, nos Mandamentos, no assumir a vocação de forma concreta, espontânea, levando à contradição do amor e da responsabilidade conforme o Sermão do Monte, sendo todo este esquema uma forma universal de amor.
Outro legado de Bonhoeffer é a discussão sobre um cristianismo sem religião. Para entendermos as ideias de Bonhoeffer, temos que aproximar a cristologia e a eclesiologia defendidos.
A cristologia de Bonhoeffer nasce de sua teologia existencialista. Cristo é um modelo para o crente. E este modelo não se encontra no meio do cristianismo eclesiástico do seu tempo. A experiência de Cristo exigia um radicalismo que não era anunciado nas igrejas da época. Para Bonhoeffer, o mundo atingira um tal índice de desenvolvimento humanitário, fruto do pensamento moderno, que o discurso de um Cristo que substituiu o ser humano tornou-se inócuo. Seguindo Kant e Nietsche, Bonhoeffer ataca o conceito de Deus metafísico presente no discurso das igrejas formadas pala União Prussiana, que juntou o pensamento de Calvino e Lutero.
A teologia cristológica precisa ser conectada à maturidade da herança cristã que se traduz em uma responsabilidade do ser humano. Para Bonhoeffer, quando Cristo vem ao encontro do ser humano pecador ele exemplifica o que é ser cristão maduro, um cristão que domina o pecado. A este domínio, não mais restrito à igreja, na confissão e absolvição de pecados, levou Bonhoeffer a defender a ideia de que a igreja está espalhada pelo mundo onde o pecado é abafado e vencido. O cristão anônimo vive sua fé fora do mundo, com uma ética de responsabilidade para com o mundo caído em pecado. Ser cristão sem ser religioso é, antes de tudo, um ataque ao eclesiocentrismo da época, muito típico das estruturas eclesiásticas ligadas a formas de governo. A igreja estatal alemã tornava todos os habitantes pertencentes a uma determinada denominação, e é este pensamento que não se coaduna com o pensamento de Bonhoeffer. Também não podemos deixar de lado a própria experiência de Bonhoeffer. Por um lado, ele é um constante turista e passa por diversas localidades até como pastor. Também, quando ele está preso, desenvolve, na prisão, suas ideias de um cristianismo fora das paredes da igreja.
Como leitor ávido do Antigo Testamento, Bonhoeffer também viu exemplos de personagens do Antigo Testamento que se aproximam de pertencer à fé cristã sem serem de fato membros do povo de Israel. A crítica à igreja fundamentada no Antigo Testamento brota do próprio esquecimento do povo do Antigo Testamento de perder o significado de pertencer a um povo dos que foram resgatados por Deus. A redenção é o tema constante no Antigo Testamento e Bonhoeffer percebe que muitos foram alcançados por ela sem pertencerem a Israel. Diferentes das religiões orientais e mitológicas, a verdadeira fé cristã precisa ser expressa pela concretude de fatos e a ressurreição de Jesus, assim como as iniciativas restauradoras do Antigo Testamento, são exemplos de se pertencer à verdadeira igreja.
Aqui Bonhoeffer deixa de lado toda a discussão da presença mediada de Cristo através dos meios da graça, o que justifica a existência da igreja cristã tanto em Israel como na igreja do Novo Testamento, aspecto importante para o pensamento luterano e que será resgatado por Hermann Sasse com sua ênfase luterana confessional. O cristianismo anônimo sem religião é contraposto pela presença de Cristo por meio da Palavra e dos sacramentos, descaracterizando o princípio fideísta de Bonhoeffer.
A partir dessas reflexões que sumarizam o pensamento de Bonhoeffer, precisamos estar atentos a outros conceitos importantes para o esquema teológico. Discipulado é uma palavra cara para Bonhoeffer, e ela brota da ruptura entre a igreja e o mundo. Se na igreja há a comunhão com Cristo através do batismo, o discípulo assume o mundo ao seu redor. Arrebatado por Cristo, o discípulo se estende para o mundo como a imagem refletida de Cristo no mundo, sendo seu imitador, como afirma Paulo em Efésios 5.1. É no discipulado que a imagem de Cristo crucificado na terra se torna concreta e, quem estiver na comunhão do Cristo encarnado e crucificado, será igual ao Cristo glorificado e ressurreto. Assim se pronuncia Bonhoeffer: “O portador da imagem do Cristo encarnado, crucificado e ressurreto, o que foi feito imagem de Deus, esse está sendo chamado a ser ‘imitador de Deus’. O seguidor de Jesus Cristo é o imitador de Deus. ‘Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados’” (Ef 5.1) (Discipulado, p.193). Mesmo sendo luterano, ecoa fortemente uma ética do dever na definição de discipulado, a obediência como forma de expressar a identidade daquele que segue Jesus Cristo. Há uma forte influência de outra fonte teológica em Bonhoeffer além do pensamento luterano confessional.
Vida em comunhão também é um tema forte para Bonhoeffer. A vida em comunhão começa com Cristo para necessariamente se estender para o próximo. A verdadeira comunhão é manifestação da fraternidade cristã entendida como realidade divina e espiritual. Bonhoeffer condena qualquer descrição de igreja em termos metafísicos. Para ele, “uma vida em comum sob a Palavra só permanecerá saudável quando se revelar não como movimento, ordem, associação, mas quando se compreender como parte da uma, santa e universal igreja cristã, onde ela participa, atuando e sofrendo, do sofrimento, da luta e da promessa de toda a Igreja” (Vida em Comunhão, p.25). A experiência comunitária estará orientada sempre para o autêntico serviço fraternal ao próximo dividido em três tipos, conforme enumera Bonhoeffer: primeiro, o de se ouvir o irmão; segundo, o de se colocar à disposição uns dos outros; e terceiro, de dar suporte, carregar sofrendo o sofrimento do outro (Gl 6.2). Diz ele: “Onde estes três serviços, ouvir, servir, suportar, são realizados de forma fiel, lá pode acontecer também o serviço mais elevado e sublime: servir com a Palavra de Deus” (Vida em Comunhão, p.67). Aquele que partilha da vida em comunidade de fé é chamado à confissão e à absolvição fraterna de pecados quando acontecem o início da comunhão, para a nova vida e para a certeza.
Mesmo que a igreja seja um local específico da revelação de Deus, Bonhoeffer segue adiante assumindo que a igreja é uma ação concreta do crente no mundo. Ao distinguir o conceito de Reino de Deus da eclesiologia, Bonhoeffer consegue tornar o conceito de igreja em algo concreto na vida diária, levando-a para muito além da presença real de Cristo mediada. Aqui novamente aparece uma contribuição para o ativismo social, quando termos como comunhão e diaconia são essenciais para a representação da igreja. A igreja em ação é expressão tanto de discipulado como de espiritualidade cristã. Neste aspecto, Bonhoeffer irá inspirar muitos pastores que irão defender um conceito de missão integral ou tratamento pastoral de uma teologia libertadora. A teologia se torna prática na missão profética, na comunhão, na vida sacramental e no compromisso libertador e de serviço diaconal para o próximo.
Ampliando mais o quadro, podemos facilmente entender o compromisso ecumênico no pensamento de Bonhoeffer. Fruto de toda essa reflexão teológica, as iniciativas ecumênicas são bem visíveis. Como já afirmamos anteriormente, a própria experiência pastoral de Bonhoeffer o coloca dentro de um denominacionalismo ecumênico. A formação de Bonhoeffer também o aproxima de outras denominações, especialmente pelo tempo que passa nos Estados Unidos.
Conclusão
Dietrich Bonhoeffer é um teólogo com forte influência de Martinho Lutero. Ele não pode ser considerado um teólogo luterano confessional. Ao assistir ao filme, faça os devidos filtros daquilo que o cinema quer passar em relação à pessoa e à obra de Bonhoeffer.
BIBLIOGRAFIA
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Seibert, Erni. O Conceito de ‘Cristo Contemporâneo’ em Bonhoeffer. Tese apresentada à Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia. Porto Alegre, novembro de 1973. Trabalho não publicado.