Na segunda-feira, dia 21 de abril, feriado de Tiradentes para nós, brasileiros, o mundo recebeu a notícia do falecimento do Papa Francisco, que nasceu argentino e foi batizado como Jorge Mario Bergoglio. O primeiro papa sul-americano, faleceu após 13 anos como líder maior da Igreja Católica Apostólica Romana, aos 88 anos de idade.
A sua morte nos leva a perceber, mais uma vez, a nossa finitude, de como é breve a nossa vida aqui neste mundo. Ou seja, “tudo passa rapidamente e nós voamos”, como expressa o Salmo 90, verso 10. E como seria desesperador, se a nossa vida terminasse ali na sepultura ou no crematório.
Mas graças ao nosso bom e vivo Deus, em Cristo Jesus, temos a certeza de que a morte foi vencida por ele, na cruz do Calvário e na sepultura vazia da primeira Páscoa. Aliás, estes eventos da salvação, também foram celebrados pelo Papa Francisco, com todos os cristãos, ainda na última Sexta-feira Santa e Páscoa, há poucos dias.
Por isso, abraçamos a todos que nos leem, em especial, aos enlutados pela morte do Papa Francisco, na certeza da promessa de Jesus, que diz: “— Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E todo o que vive e crê em mim não morrerá eternamente. Você crê nisto?” (Jo 11.25,26 – NAA).
Também compartilhamos com todos, uma breve reflexão do teólogo e pastor Cesar Motta Rios, sobre esse tema, como segue…
POR ENQUANTO, NINGUÉM TEM PAPA…
*Cesar Motta Rios
Às vésperas do sepultamento de Francisco e enquanto não se define quem será o próximo, não há papa. Não há papa para ser suspeito de ocupar o lugar do anticristo. Não há papa para ser considerado Bispo de Roma e detentor de especial honra, mas não autoridade máxima sobre toda a Igreja por direito divino. Não há papa para ser considerado o vicário de Cristo na terra. Não há papa para ser considerado a pessoa errada em uma instituição correta. Luteranos, reformados, ortodoxos, católicos comuns e católicos sedevacantistas (católicos que não reconhecem os papas desde o Concílio Vaticano II), estão todos em igualdade hoje. Ninguém tem papa.
Certamente, é tolice imaginar que essa igualdade vai além da superficialidade. As diferenças de pensamento e posicionamento permanecem e, por conseguinte, geram diferenças de ação. Obviamente, como se poderia esperar, são os católicos romanos que mais se atarefam nesta ocasião. São eles que têm algo de urgente e sensível para resolver. Por sua vez, protestantes em geral não se veem diretamente afetados. Ainda assim, muitos se mobilizam.
Nos últimos dias, tenho encontrado diferentes reações diante da morte do papa. Há quem se prontifique para uma aula sobre o que as confissões (de sua tradição específica) dizem sobre o papado. Há quem o cubra de elogios, mesmo marcando diferença quanto à teologia. Há quem se apresse em elencar motivos de acusação. Há quem arraste o assunto para debaixo do guarda-chuva da polarização política de nossos dias. Nesse afã, não faltou quem afirmasse que Francisco estaria a caminho do inferno, como se nos coubesse esse tipo de julgamento.
Por um lado, eu não tenho disposição para julgar ou exaltar Jorge Bergoglio. Por outro lado, não me silencio absolutamente. Seria impossível fingir que sua passagem pela diocese de Roma foi insignificante. Como Francisco, Jorge nos levou a conversar muitas vezes. Sim, é normal que papas façam isso vez por outra. A diferença parece ser que o último papa colecionou momentos mais surpreendentes e intensos nesse sentido.
Um desses momentos se deu há não muito tempo, em setembro do ano passado. Durante um evento inter-religioso em Singapura, o Papa Francisco disse mansamente a jovens atentos que “todas as religiões são um caminho para chegar a Deus”. Prontamente, muitos católicos o acusaram de abertura ao sincretismo ou relativização improcedente. Frisaram que, segundo a doutrina católica, não é em tudo que diz que o papa é infalível. Ao mesmo tempo, outros tantos católicos procuraram logo amenizar as palavras do religioso, tentando até mudar o sentido óbvio do que estava dito.
Esse caso é só um exemplo. Ao longo de pouco mais de uma década de papado, muitas afirmações de Francisco deram lugar a longas querelas. Algumas vezes, para complicar, certas falas foram retiradas de seu contexto ao serem noticiadas, de modo que parecia que Francisco ousava mais do que realmente o fazia. No entanto, é fato que, em alguma medida, ele ousava, e não só em palavras.
Faço este movimento no texto justamente para dizer algo que me parece positivo na caminhada de Francisco: uma humildade nas coisas exteriores coerente com as próprias palavras. Parecia um papa sem pedestal.
Isso ficou claro desde o início, quando o então novo papa definiu o nome que usaria, em homenagem a Francisco de Assis. E salientou ainda mais quando demonstrou em sua posse que, na forma de se relacionar com os bens, ele agiria de forma coerente com a escolha do nome.
O novo papa não era dado a ouro e pompa. Um anel simples. Vestes simples. Uma cruz simples. Uma cátedra simples. Claro, houve quem visse nisso motivo para criticar. Disseram que diminuía a Igreja, que aniquilava a elevação e a solenidade! Para esses, parecia algo ofensivo. A meu ver, era só uma insistência em ser coerente com as próprias palavras. Naqueles dias, aquilo me fazia lembrar do pensamento de Lutero. Não é difícil recordar a ressalva que Lutero fazia ao uso de vestes litúrgicas. Elas deviam ser permitidas, “desde que não haja pompa e luxo” (LUTERO, 2000, p. 166). Também, em resposta a João Eck, o reformador afirmava, naquela primeira metade do século XVI, que nenhum cristão “vê, por mais que queira, que os pontífices romanos são pastores e mestres. Veem e reconhecem neles dominadores e ostentadores de pompa” (LUTERO, 1987, p. 315).
Um pastor não tem majestade. Afinal, seu principal trabalho é o de mensageiro do Evangelho de Jesus. Quanto mais um ministro da Igreja se entende como pastor, tanto mais entenderá sua missão e agirá de modo coerente com ela. Eu acredito, sim, que Jorge Bergoglio tinha vontade de ser um pastor, não um monarca poderoso. Entendo que ele queria enfatizar, deixar correr livremente a misericórdia de Deus, e não estancá-la. Em que medida ele conseguiu fazer tudo isso naquela estrutura e carregando todo aquele arcabouço doutrinário? Isso é algo questionável. Em que medida sua compreensão da missão não estava marcada por erros de pensamento e agenda? Também cabem questionamentos.
De qualquer forma, é muito fácil imaginar como, já no dia de sua posse, inúmeros religiosos dados à ostentação devem ter sentido um grande incômodo, pela comparação inevitável que a postura do novo papa ensejava. Isso é bem curioso, claro, pois o incômodo devia existir desde sempre. Afinal, o próprio Senhor Jesus e os apóstolos estão na vida da Igreja como modelo para a comparação.
Agora, é bom observar que, ao abrir mão daquelas marcas de riquezas tão comuns no Vaticano, Francisco não queria incutir na mente dos fiéis uma obrigação de ascetismo radical. Ele não estava dizendo ser melhor que os demais ou que o jeito certo de ser cristão era aquele dos monges. Pelo contrário, em vez de desprezar a vida comum, Francisco tomou um caminho um tanto parecido com aquele percorrido pelos luteranos no século XVI, com a conhecida defesa que os reformadores fizeram da importância das mais variadas vocações. No ano de 2018, em uma “exortação apostólica” que recebeu por título Gaudete et Exsultate [Alegrai-vos e exultai], o papa conclamava o povo à santidade no mundo atual. O seguinte trecho me impressionou:
“Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho a serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais”. (Gaudete et Exsultate, 14)
É claro que, no decorrer do texto, revela-se uma compreensão da santidade não exatamente igual àquela dos reformadores da Reforma centrada em Wittenberg, inclusive, por uma questão de identificação da “causa”. Em certo momento, Francisco parece ver na ação a causa da santidade cristã. Nós apontaríamos enfaticamente para a Palavra, enquanto veríamos a ação mais como desdobramento, expressão dessa santidade que nos é concedida.
Isso – mas não só isso – me faz pensar que teria feito muito bem a Jorge Bergoglio uma convivência maior com a forma como nós, luteranos, cremos, confessamos e ensinamos. Ele poderia ter vivido melhor. Poderia ter ensinado melhor. Acho que sim.
Francisco procurou ser respeitoso para com outras tradições cristãs, inclusive para com os luteranos. Lembro-me de muitas e muitas vezes em que, durante seu papado, pude dizer a católicos tradicionalistas belicosos que me interpelavam na internet: “Você devia, como católico, estar em harmonia com o Bispo de Roma e aprender com ele. Francisco não pensa ou age assim”. Era bom poder acalmar os ânimos assim.
Sim, Francisco tem meu respeito. Isso, não pelo respeito que ele demonstrou pelos luteranos ou por alguma proeza de sua parte. Diante da morte, na verdade, deveríamos todos ser respeitosos e cultivar certo comedimento nas palavras. Isso não significa que as pessoas se tornem santas ou se coloquem acima de qualquer crítica por terem morrido. É inegável que há, sim, palavras de Francisco que ainda darão lugar a muita discussão. É inegável que ele teve suas contradições e que nem sempre fez as melhores escolhas. Contudo, não direi qualquer palavra “contra” ele hoje. A minha esperança é de que ele seja acolhido por Cristo em sua misericórdia. Visto que todos pecaram, não há outra salvação, para quem quer que seja, Jorge, Chico ou Francisco.
De fato, por enquanto, ninguém tem papa. Mas todos têm um lembrete: Nossa caminhada por aqui logo chegará ao fim. Enquanto isso, além de procurar pensar e falar como quem tem a consciência cativa à Palavra de Deus, cultivemos a tão necessária coerência entre nossas palavras e nossas ações.
Fontes mencionadas:
LUTERO, Martinho. Comentário de Lutero sobre a 13ª Tese a respeito do Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor). In: Obras Selecionadas, v. 1. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1987. p. 267-332.
LUTERO, Martinho. Formulário da Missa e da Comunhão para a Igreja de Wittenberg. In: Obras Selecionadas, v. 7. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2000. p. 155-172.
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20180319_gaudete-et-exsultate.html, acessado em abril 2025.
*Cesar Motta Rios
É teólogo, pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), em Miguel Pereira, RJ.
Excelente texto. Ótimo e necessária reflexão.
Todos estamos em igualdade, muito boa essa reflexão, que Deus o abençoe.