Concílios da igreja cristã

O que foram os concílios da igreja cristã antiga? Qual a importância dos concílios na vida da igreja cristã contemporânea?

Rev. prof. dr. Sergio Luiz Marlow
Pastor da IELB, Serra, ES
Professor de Teologia e História
sergio@fuv.edu.br

              Certamente você já ouviu e reconhecerá as seguintes palavras: “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, tanto das coisas visíveis como das invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os mundos, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, de uma só substância com o Pai, por quem todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e pela nossa salvação desceu do céu e se encarnou pelo Espírito Santo na virgem Maria e foi feito homem, foi também crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado; e ao terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras, e subiu aos céus, e está sentado à direita do Pai e virá novamente em glória a julgar os vivos e os mortos, cujo reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Doador da vida, o qual procede do Pai e do Filho, que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado; que falou pelos profetas. E numa única santa Igreja Cristã e Apostólica. Confesso um só batismo para remissão dos pecados, e espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo vindouro. Amém”.

                Se você pensou no Credo Niceno, você acertou. Mas você sabe quando e onde o Credo Niceno foi escrito? Com qual finalidade? E por que o Credo Niceno, juntamente com o Apostólico e o Atanasiano, constituem os três credos aceitos pelos cristãos de todo o mundo em todos os tempos, inclusive pelos luteranos? Nas Confissões da Igreja Evangélica Luterana, estes credos constam como três símbolos de confissão de fé. O teólogo luterano Otto Goerl afirma: “São estas, pois, as três Confissões Gerais ou Símbolos Ecumênicos da igreja antiga, que tiveram sua origem nos primeiros séculos da história cristã, após agitadas lutas doutrinárias em torno da Trindade e da divindade de Jesus” (GOERL, 1977, p.11).

                 Neste ano de 2025, a cristandade comemora 1.700 anos da realização do Concílio de Niceia, evento que culminou na redação do Credo Niceno. O Credo Niceno foi escrito no Concílio Geral da igreja cristã, ocorrido no ano de 325 d.C., na cidade de Niceia, atual região da Turquia, a fim de que as doutrinas principais da igreja cristã pudessem ser ordenadas de forma clara e que se evitassem e corrigissem as heresias que surgiam no período. Então, é interessante saber também quais foram os concílios da igreja cristã antiga, como se procedeu na época da Reforma Luterana, e qual a importância ainda hoje dessas confissões da fé cristã.

Os concílios gerais ou ecumênicos da igreja cristã antiga

                O teólogo Urbano Zilles, na sua obra a respeito dos primeiros concílios da igreja cristã, explica o significado da palavra concílio: “é uma transição da palavra latina Concilium referindo-se à convocação de uma assembleia” (ZILLES, 1999, p.7).

               Nos dois primeiros séculos da igreja cristã, normalmente, ocorreram concílios em âmbito regional. Com a conversão do imperador Constantino ao cristianismo – e a consequente cessação de perseguições à igreja cristã –, os concílios gerais ou ecumênicos puderam ser realizados com a função de estabelecer a compreensão da Escritura Sagrada e evitar as heresias. Segundo Zilles, “a situação mudou com o Édito de Milão (313) dando liberdade ao Cristianismo. Depois que o imperador [Constantino] abraçou o Cristianismo, é ele quem convoca os Concílios” (ZILLES, 1999, p.8).

          Também o historiador Cairns afirma: “Pode-se indagar por que as controvérsias sobre problemas teológicos aconteceram tão tarde na história da Igreja antiga; o fato é que, nos tempos da perseguição, a submissão a Cristo e à Bíblia era mais importante do que o significado de certas doutrinas. A ameaça do Estado levou a Igreja à unidade interna a fim de se apresentar coesa na luta. Posteriormente, a tentativa de Constantino de unificar o império significou que a Igreja precisaria ter um corpo unificado de doutrinas” (CAIRNS, 2005, p.105). Dessa forma, passado o período de perseguições em que os cristãos “lutaram” pelo direito de professar a fé cristã, cabia, a partir do século 4º da era cristã, estabelecer com mais propriedade quais eram as principais doutrinas do cristianismo.

           Nesse sentido, os concílios na igreja antiga ocorreram em momentos primordiais da consolidação da igreja cristã, e, basicamente, poderiam ser classificados como reuniões convocadas pelo imperador e compostas essencialmente de clérigos (religiosos) da época. Ao mesmo tempo, esses eventos concentraram seus escritos na formulação das “profissões de fé” dos cristãos e em “dar conta da fé” frente às correntes heréticas.

          Nessa perspectiva, como mencionamos, o primeiro Concílio Geral ou Ecumênico da igreja cristã ocorreu na Niceia antiga, ano 325 d.C. A esse respeito, o historiador da igreja, Martin Dreher, afirma: “Esse fato motivou o imperador [Constantino] a interferir diretamente na questão. Convocou um sínodo de todo o império, que deveria se reunir na residência de verão do imperador, em Niceia, no verão de 325. Dos que foram convidados, compareceram 250 bispos. Todos viajaram por conta do Estado. O maior contingente de bispos provinha do Oriente. Do Ocidente vieram apenas quatro bispos” (DREHER, 2013, p.73).

             No texto, Dreher afirma que um motivo, em especial, fez com que o imperador Constantino convocasse o Concílio em Niceia: Havia surgido, há algum tempo, entre os cristãos, um teólogo de nome Ário, e este pregava que Jesus não era igual a Deus Pai. Segundo Dreher, Ário afirmava: “O Filho não é igual ao Pai e também não é da mesma essência (ousia) que ele. Ele foi criado através da vontade do Pai antes dos tempos […] Cristo é uma criatura feita do nada” (DREHER, 2013, p.73). A teologia do Logos tendia, então, a ver a relação Pai e Filho como de subordinação do segundo (o Filho) ao primeiro (o Pai).

             Opôs-se, entre outros cristãos, à pregação de Ário, Atanásio, um dos grandes baluartes da fé cristã na igreja antiga. Atanásio entendia que a pregação de Ário tinha sérios problemas. O historiador Hägglund descreve dois desses problemas: “Na luta contra o arianismo, Atanásio desenvolveu a doutrina eclesiológica da Trindade e do Logos (Palavra – Cristo). Alguns dos seus principais argumentos são os seguintes: (1) Se Ário está certo quando diz que Cristo é apenas um ser criado e não da mesma substância do Pai, a salvação não seria possível. [2] A doutrina de Ário implica no culto à criação e a fé em mais de um Deus” (HÄGGLUND, 1986, p.68).

               Atanásio e seus seguidores venceram a disputa, quando o Credo Niceno apontava para a mesma essência entre Deus Pai e Deus Filho. O Credo Niceno foi ratificado em definitivo no Concílio realizado em Constantinopla, em 381, acrescentando-se aí também que Deus Espírito Santo é da mesma essência do Pai e do Filho.

            Ao todo, ocorreram, entre 325 d.C. e 787 d.C., sete importantes concílios ecumênicos da igreja cristã, a saber: em Niceia (325), para resolver a questão ariana; em Constantinopla (381), para afirmar a personalidade do Espírito Santo e a humanidade de Cristo (Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem); em Éfeso (431), para enfatizar a unidade da personalidade de Cristo (Jesus possui duas naturezas: a divina e a humana); na Calcedônia (451), para declarar o relacionamento entre as duas naturezas de Cristo; em Constantinopla (553), para tratar da heresia monofisita (sobre a natureza humana de Cristo); em Constantinopla (680), para condenar os monotelitas (a questão da vontade divina e humana de Cristo); e, por fim, em Niceia novamente (787), para tratar dos problemas levantados pela controvérsia das imagens. 

           Não é possível, neste espaço, detalhar com profundidade esses concílios gerais ou ecumênicos ocorridos na igreja cristã entre a antiguidade e o período medieval, mas podemos destacar a composição dos concílios formados pelos clérigos e a importância da definição das doutrinas com base sólida nas Escrituras Sagradas, em especial as questões relacionadas à Trindade e à cristologia, ou seja, sobre a pessoa e obra de Jesus Cristo.

           É importante lembrar também que outros concílios continuaram a ocorrer, mas não mais ecumênicos ou gerais, visto que, com o Grande Cisma ocorrido na igreja cristã no ano de 1054, a cristandade viu-se dividida entre Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Católica Apostólica Ortodoxa. Na Igreja Católica Apostólica Romana, pode-se destacar o Concílio de Trento (1546), dentro do processo da Contrarreforma católica, em face do crescimento do luteranismo, e, já no século 20, o Concílio Vaticano II (1962-1965), quando se buscou uma “modernização” do culto e dos costumes da Igreja Católica Apostólica Romana.

Os “concílios” na época da Reforma: a defesa do luteranismo

            Pode parecer estranho o subtítulo acima, visto que ele não remete propriamente a concílios da igreja, mas creio que é interessante mencionar alguns eventos que foram fundamentais na história da igreja cristã e, especialmente, no nascimento e desenvolvimento do protestantismo luterano.

           Quando o imperador Carlos V, do Sacro Império Romano-Germânico, convocou a Dieta de Worms para abril de 1521, na prática, não estava reunindo clérigos e autoridades seculares para decidir sobre doutrinas cristãs, como ocorrera nos concílios da Igreja Antiga. Essa Dieta (espécie de assembleia), em especial, tinha o propósito de que o reformador Martinho Lutero se retratasse de todos os seus escritos, ou seja, uma espécie de “concílio” para que Lutero voltasse atrás sobre tudo o que havia escrito e dito no que tange às doutrinas da Escritura Sagrada. Conforme lembra Hägglund, é fundamental recordarmos a posição de Lutero: “De pé diante da Dieta reunida, Lutero foi intimado a retratar-se. Sua famosa resposta, apresentada após um dia de deliberação, fez ver claramente que não poderia retratar-se a não ser que fosse convencido pelas Escrituras e por raciocínio lógico” (HÄGGLUND, 1986, p.183, 184).  Lutero, de maneira clara e inequívoca, reforçou, diante da Dieta de Worms, que a única norma de fé e vida de um cristão deveria ser a Escritura Sagrada, e não a palavra de homens ou de certas tradições da igreja, como o “perdão dos pecados” via indulgências papais.

              Da mesma forma, em outro momento singular da história da igreja, e mais precisamente do luteranismo, quando reunidos numa espécie de “concílio” em Augsburgo, os teólogos e príncipes luteranos, diante do imperador Carlos V, confessaram a sua fé e a doutrina luterana baseada nas Sagradas Escrituras. A esse respeito, no livro institucional da IELB, Cristo Para Todos, edição de 2014, lemos sobre a Confissão de Augsburgo, de 1530, que “é um conjunto de afirmações doutrinárias acerca dos ensinos bíblicos. O documento foi elaborado por Felipe Melanchthon, aliado de Martinho Lutero na causa da Reforma. O documento foi apresentado – como sendo o testemunho luterano – ao imperador Carlos V e à Dieta do Santo Império Romano, em 25 de junho de 1530. Compõe-se de vinte e oito artigos. Destes, vinte e um apresentam a doutrina luterana. Eles provam que os luteranos não estavam ensinando novas doutrinas, contrárias às Escrituras Sagradas. Os artigos 22 a 28 tratam dos abusos doutrinários medievais que os luteranos tinham corrigido. A Confissão de Augsburgo é considerada o principal documento confessional da Igreja Luterana” (IELB, 2014, p.9).

          Apesar de não serem concílios propriamente ditos, esses e outros eventos de que os confessores luteranos participaram foram de suma importância para que a verdade do evangelho pudesse prevalecer e hoje nós pudéssemos ser herdeiros da Reforma Luterana.

           É oportuno mencionar ainda o que o teólogo Hermann Sasse escreve sobre a Igreja Luterana como igreja confessional que “lutava” nos “concílios” para defender a fé nas Escrituras Sagradas: “A primeira destas novas igrejas confessionais foi a igreja evangélica luterana. Fazendo sua primeira aparição em 1530 como a igreja da Confissão de Augsburgo, ela foi a igreja confessional par excellence. Ela surgiu de repente, não como uma organização, e ainda assim como uma igreja. Ela ainda estava sem forma de governo. Ela não tinha órgãos episcopais ou sinodais para representá-la. Os estados imperiais tinham que representá-la perante o mundo político, e uns poucos teólogos, como Melanchthon, perante o mundo eclesiástico. O que existia, entretanto, era o ensino e a confissão. E essa não começava com as palavras Lutherus docet (Lutero ensina), mas com as palavras Ecclesiae magno consensu apud nos docent (Nossas igrejas, de comum consentimento, ensinam)” (SASSE, 2012, p.90).

A importância dos credos cristãos na contemporaneidade

          Diante do exposto, convém refletirmos: Será que estes credos cristãos nascidos desde a igreja antiga, e mais especificamente o Credo Niceno, ainda têm importância e valor para a igreja nos dias de hoje? Certamente, em tempos de modernidade líquida e fluída, conforme afirma o sociólogo Pierre Bourdieu, quando não há verdade absoluta, onde tudo é relativo, os credos cristãos continuam sendo respostas importantes sobre a fé e a vivência cristã. Os credos cristãos não apenas definem – ainda que não na plenitude – a essência de Deus em três Pessoas distintas: O Pai, o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo, como também são um belo testemunho de fé dos cristãos. Ao anunciarmos “Cremos em Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo”, queremos estar sempre “preparados para responder a todo aquele que pedir razão da [nossa] esperança” (1Pe 3.15).

Referências bibliográficas:

CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos. Uma história da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005.

DREHER, Martin N. História do povo de Jesus. Uma leitura latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2013.

GOERL, Otto. Cremos, por isso também falamos. Porto Alegre: Concórdia, 1977.

HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1986.

IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL. Revista Cristo Para Todos. Edição 2014.

SASSE, Herman. Aqui nos firmamos: natureza e caráter da fé luterana. Porto Alegre, Concórdia, 2012.  

ZILLES, Urbano. Documentos dos primeiros oito concílios ecumênicos. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. [Zilles acrescenta em seu livro, ainda, um oitavo Concílio Ecumênico: o Concílio de Constantinopla IV, entre os anos de 869-870. Entretanto, a maioria dos estudiosos do tema entendem os concílios ecumênicos ou gerais em número de sete.]

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