Neste último artigo de elogio do ócio (o verdadeiro, clássico e cristão), enfrentarei o desafio de falar de um poderoso inimigo do cristão, a acídia, e seguirei as análises do prof. Jean Lauand a respeito.
Os cristãos antigos, desde o século 4º, tentaram identificar os pecados que são fonte e raiz de outros pecados, os chamados pecados capitais, que a tradição da Igreja Católica Romana acabou por consolidar em: soberba, avareza, inveja, ira, impureza, gula e preguiça. Mas, durante mais de mil anos, em lugar da preguiça, o posto de pecado-chave era ocupado pela (hoje desconhecida) acídia.
Com essa substituição, a antropologia perdeu uma poderosíssima (e incrivelmente atual) ferramenta de análise da condição humana: a acídia.
Em vez do pecadilho da preguiça, a acídia é coisa séria: é um tipo de tristeza, melancolia e abatimento da alma, a tristeza pelo bem espiritual; a queimadura interior de quem recusa os bens do espírito. Até o início da idade moderna, tal tristeza é que era vista como pecado capital.
Acídia é base de atitudes contrárias. Uma – secundária e menos perigosa – leva à inação (daí a confusão com a preguiça). Mas os antigos perceberam que a tristeza da alma, a acídia, gera também a ação, um ativismo, a ação desenfreada do homem que perdeu o rumo da vida.
Podemos encontrar essa inquietude no poema “A troca de pneu” (Der Radwechsel), de Bertolt Brecht:
“Fico sentado à beira da estrada/O chofer troca o pneu/Não “tô legal”, lá de onde venho/Não “tô legal”, lá para onde vou/Por que olho a troca do pneu/Com impaciência?” (Ich sitze am Straßenhang;/Der Fahrer wechselt das Rad;/Ich bin nicht gern, wo ich herkomme/Ich bin nicht gern, wo ich hinfahre/Warum sehe ich den Radwechsel/Mit Ungeduld?)
No fazer e no não fazer, o tédio. Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, diagnostica a tristeza da acídia:
“Umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim”.
O poder deletério da acídia fica mais claro quando identificamos suas tradicionais filhas, os males que dela derivam.
A primeira é o desespero, a que se liga uma “irmã”, a pusilanimidade. Paralisado pela vertigem, pelo medo das alturas espirituais, a acídia é um aborrecer-se de que Deus o tenha chamado à estatura de uma vida na graça.
Queimado por essa tristeza suicida, surge a evagatio mentis, a dispersão de quem renuncia a seu centro interior e entrega-se à importunitas: abandonar a torre do espírito para derramar-se no variado. Afogando a sede na água salgada de compensações e prazeres da ação desenfreada, surge o falatório inócuo (verbositas), o agitar-se, o mover-se (inquietudo corporis), a incapacidade de concentrar-se num propósito (instabilitas) e um afã desordenado de sensações (curiositas).
Se já Pascal, em Pensamentos (136/139), diz que a infelicidade vem de o ser humano não poder estar a sós num quarto; hoje, as possibilidades de dispersão no superficial se ampliaram e quase que nos são impostas: na atração magnética pelos celulares e mídia, para não falar das drogas, etc.
Como se vê, o tema é de espantosa atualidade e merece especial e permanente atenção de pais, pastores e educadores. E o antídoto para esse perigoso inimigo do cristão, encontra-se sobretudo no cânone dos textos sagrados da tradição cristã, como esse do salmo 42.11: Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu.”