O culto e suas adjetivações

Adjetivos são palavras que caracterizam os substantivos, conferindo-lhes uma qualidade. Fazem parte da língua, são importantes, mas os professores de português alertam contra o uso excessivo da adjetivação. Uma redação com muitos adjetivos para poucos substantivos não será uma boa redação. O conselho para quem escreve é evitar construções como “o difícil e alarmante problema da falta de recursos” e optar por algo mais simples, como “o problema da falta de recursos”.

Os adjetivos podem se tornar um problema na teologia também. Quando se usam adjetivos desnecessários ou adjetivos que a Bíblia não autoriza, a teologia pode estar a perigo. Um exemplo é adjetivar igreja, fazendo distinção entre igreja visível e invisível, o que mais atrapalha do que ajuda. Outro exemplo é adjetivar Batismo, querendo fazer distinção entre Batismo infantil e Batismo de adultos, quando a Bíblia fala sempre e apenas de Batismo.

São vários os adjetivos que costumam aparecer ao lado da palavra culto, usada para designar a cerimônia de culto de adoração a Deus, geralmente realizada num templo. Cabe refletir um pouco sobre alguns desses adjetivos que costumamos acrescentar ao termo culto.

1. Culto cristão

Quando se fala sobre culto cristão, pode-se pensar que se trata de um culto que é típico do Cristianismo ou que é realizado por cristãos. No entanto, talvez seja melhor pensar que o culto é cristão quando ocorre conforme a instituição de Cristo, ou seja, quando, no culto, “o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho” (Confissão de Augsburgo, Artigo VII). Mas há ainda outros elementos que são essenciais para que se tenha um culto cristão, como, por exemplo, o fato de ser dirigido à Santíssima Trindade.

2. Culto luterano

A rigor, não existe diferença entre culto luterano e culto cristão, assim como um jovem “luterano” é simplesmente um jovem “cristão”. Mas o culto é luterano quando apresenta características da reforma que Lutero e seus colegas aplicaram ao culto e à liturgia. Hoje, um culto luterano se caracteriza pela manutenção da liturgia histórica (ocidental ou latina), pelo destaque à pregação do evangelho, pela distribuição da Santa Ceia sob duas espécies, pela participação da congregação, etc.

3. Culto dominical

Dominical é um termo que lembra domingo, mas o domingo só é domingo por ser o dia “do Senhor”. Em outras palavras, o culto é dominical por ser culto “do Senhor”. E, embora o domingo seja o dia tradicional de culto, e isso desde os tempos do Novo Testamento, o domingo não é o sábado cristão. Isso significa que não existe um dia fixo de culto cristão, estabelecido por Jesus ou pelos apóstolos, no Novo Testamento. Assim, pode-se realizar um culto na quinta-feira. Não precisaria ser necessariamente a antecipação do culto do domingo, embora na prática acabe sendo algo assim, porque o povo luterano se condicionou a pensar em termos de um culto semanal (a exceção costumava acontecer em períodos específicos, como Advento e Quaresma, quando se realizavam cultos no meio da semana). Um culto que pode ser visto como antecipação de outro culto é o de sábado à noite, que, a rigor, é um culto na véspera do domingo.

4. Culto festivo

Ao se dizer culto “festivo”, parece que se quer significar que o culto será ou foi especialmente alegre, com muitos cânticos. Mas será que existe culto que não seja alegre, mesmo que seja na Sexta-Feira Santa? Também não se precisaria falar sobre culto “de louvor”, porque louvor faz parte de todos os cultos. Talvez se queira dizer que o culto é festivo por incluir elementos que normalmente não aparecem, como, por exemplo, a participação de um coro ou a presença de um pregador convidado. Além disso, como festa lembra quebra da rotina, todo culto na igreja é festivo, na medida em que quebra a rotina do culto cotidiano, do culto particular e/ou familiar que se estende por toda a semana.

5. Culto tradicional e culto contemporâneo

Por culto tradicional se entende, em geral, um culto litúrgico, um culto em que, por exemplo, ainda se canta o Gloria in Excelsis. No entanto, as ordens litúrgicas luteranas, especialmente as incluídas no Hinário Luterano, são tradicionais no seu todo, porque preservam elementos que foram recebidos da tradição. O início ou prefácio da celebração da Santa Ceia é uma das partes mais antigas da liturgia cristã. E o que seria um culto contemporâneo? De certa forma, todo culto é contemporâneo, porque sempre é celebrado no tempo presente. Mas normalmente se entende por contemporâneo um culto ou uma liturgia que inclui elementos, especialmente cânticos, que são de nosso tempo. Como a liturgia é uma tradição criativa, ou seja, uma tradição que permite a criatividade, isso é perfeitamente possível. O Hinário Luterano inclui várias músicas, além de muitas letras, que são do nosso tempo. Também cabe acrescentar que um culto contemporâneo que sempre se repete acaba se tornando um culto tradicional.

6. Culto autóctone

Autóctone significa natural da região onde se mora. Uma liturgia se torna autóctone quando inclui elementos (linguagem, ritmos, instrumentos) que são típicos do lugar em que se vive. Um bom exemplo de culto autóctone é o culto gauchesco, em que os cânticos tradicionais como o Kyrie, o Gloria in Excelsis e o Agnus Dei aparecem em linguagem e ritmos do sul do Brasil. O mesmo se aplicaria a um eventual culto sertanejo, culto nordestino, etc.

7. Culto jovem

Já houve um tempo em que culto jovem significava culto em que se tocava violão e/ou guitarra. Hoje, em certos momentos, parece designar um culto com maior participação de jovens. Às vezes, fica a impressão de que é uma reunião de jovens que foi transferida do salão para o templo. A rigor, um culto jovem, com uma liturgia jovem, teria de tratar de forma criativa (jovem) a tradição que foi recebida. Em outras palavras, um autêntico culto jovem envolveria a adaptação das partes tradicionais do culto, em especial dos cânticos (Kyrie, Gloria, Agnus Dei, Sanctus), para uma linguagem jovem, com uso de instrumentos modernos. Uma ordem assim já existe e é usada de tempos em tempos na capela do Seminário Concórdia.

8. Culto bonito, culto rápido, culto demorado

Quando alguém diz que “o culto hoje foi bonito”, não está necessariamente dizendo que em outros momentos o culto foi feio. Parece que bonito é usado no sentido de “especialmente significativo para mim” ou “um culto do qual tive a felicidade de participar”. E o que se quer dizer com a queixa de que o culto foi demorado? Rápido e demorado são coisas relativas, dependendo de cada pessoa e da expectativa que ela tem. Se alguém se condicionou a um culto de uma hora, o acréscimo de quinze minutos fará com que pareça demorado. Se alguém se acostumou com um culto de uma hora e meia, dirá que o culto de uma hora e dez minutos foi rápido. Será que existe ainda hoje algum culto com menos de uma hora de duração? Se existir, nele não se poderá cantar o hino “Preciosas são as horas na presença de Jesus” (número 190 do Hinário Luterano)!

9. Culto show

Este é o nome dado, em tom de crítica (pertinente), a um culto que se transforma num tipo de concerto, seja de um coro, seja de um conjunto, seja de um cantor, seja de um pregador. Púlpito não é palanque, e o santuário da igreja não é palco. Nada impede que um cantor faça um solo ou que o coro cante uma música que não se relaciona diretamente com o tema (ou a época) do culto. Mas igreja é reunião, e o culto é ação corporativa. Até a pregação é feita em nome da igreja, que ao final dirá o amém (ainda que mentalmente). Mas se as partes que cabem ao povo, em especial os hinos, forem monopolizados por solistas e ninguém consegue cantar junto, como se diz, o culto se transformou em show. Culto show não é culto; é show. A reação da igreja não deveria ser “Que grande cantor!” ou “Que excelente pregador!”, mas “Que grande Salvador!”

10. Culto edificante

Às vezes se ouve dizer: “Que culto edificante, este de hoje!” Mas será que existe culto que não seja edificante? O culto é edificante porque dele sempre se sai diferente do que se entrou, mas o culto é edificante, acima de tudo, porque nele se é edificado pela Palavra de Deus, pelo consolo que vem do Evangelho, pelo privilégio de participar do corpo e sangue de Cristo.

Cuidado com os adjetivos! Eles existem, ajudam a tornar a linguagem bonita, mas os entendidos recomendam que sejam usados na medida certa. Usamos adjetivos no contexto da igreja e adjetivamos o termo “culto”. Podemos fazer isso e o fazemos. Mas talvez devêssemos dar menos atenção aos adjetivos e focalizar mais o termo culto. Culto “isso”, culto “aquilo”? Melhor simplesmente culto.

*Texto publicado na edição de novembro de 2016.

Comentários

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Matérias Relacionadas

Ações de Graças em todo tempo

Célia Marize BündchenPresidente da Região Catarinense “Graças dou por esta vida.” Assim inicia um belo hino que certamente todos nós gostamos de...

Veja também

Ações de Graças em todo tempo

Célia Marize BündchenPresidente da Região Catarinense “Graças dou por esta...

No coração, a guerra. Na Bíblia, a paz

Assista à reflexão do pastor Paulo Teixeira, secretário de Relações Institucionais da SBB, baseado em 2Co 5.18

Aos aflitos

Ao corpo de Cristo pertencem pessoas que se lembram de nós que se aproximam de nós com afeto. A presença do Criador em suas criaturas afasta o medo. João nos garante que podemos caminhar com absoluta confiança, mesmo em época de crise.