Só de parte da experiência de Saulo há testemunhas, os que o acompanhavam ouviram a voz, não perceberam imagem nem luz. Saulo, o escolhido, é um soldado tombado, cego e desamparado, levanta-se vazio. Seguro, Saulo tinha vivido desde a infância, o passado do seu povo o mantinha confiante, o nome lembrava Saul, o primeiro rei de Israel, monarca inaugural do período fulgurante da história de sua gente, o florescimento culmina com o grande rei Salomão, grande na atuação política, grande no saber. Em território romano, Saulo se movia como cidadão, privilégio de poucos. Estabeleceu-se em Jerusalém para fortalecer certezas, para atuar no centro da vida religiosa dos descendentes de Abraão. Não podia imaginar que a queda era o primeiro ato de uma revolução pessoal e universal, a voz do alto derrubou as barreiras entre o limitado e o sem limites.
Na luz que cegou Saulo brilhava o Infinito, o caminho recusado alinha-se como senda que leva para além de todos os caminhos. Jesus aponta a Saulo um abrigo inesperado, Damasco, manda que se hospede na casa de Ananias, um dos perseguidos, Saulo deveria seguir os passos de quem o guiaria à rua Direita. Rumo a Damasco, o inimigo do Caminho ensaia os primeiros passos para nova etapa, orientar desorientados. A acolhida em Damasco não foi festiva, Ananias e a comunidade cristã tinham dificuldades para entender a repentina transformação de Saulo, embora o Ressuscitado garantisse que Saulo era vaso escolhido.
O cegado na estrada a Damasco é vaso (skeuos), recipiente sem conteúdo. Saulo vinha sendo preparado desde a infância para andar no “caminho” e não o sabia, nada se perdeu de sua formação farisaica e helênica, ela mudou de sentido; como vaso, o que lhe ensinaram cerca um espaço vazio a ser preenchido com outro conteúdo. Cabe ao que abre os olhos aproximar o que o ódio separou. Saulo aprende que Jesus é um poder que age, que transforma, que constrói. Saulo batia-se por um mundo limitado, entra num mundo sem limites; em lugar da violência que imobiliza, descobre a palavra que liberta.
O perseguidor passa a ser perseguido. Mãos cautelosas o ajudam a fugir de Damasco. Dirige-se a sinagogas para reexaminar a Escritura. O convertido esclarecia pessoas habituadas a obedecer, palavras lidas poderiam ter sentido diferente do consagrado. O conhecimento que lhe vem do alto dá novo sentido à vida, Saulo se contempla com outros olhos, o saber se amplia lentamente, “Então conhecerei como sou conhecido” – dirá mais tarde.
Saulo percebe-se isolado, os antigos amigos o perseguiam, os novos lhe negavam confiança. Resolveu voltar a Tarso, sua terra natal. Viver em Tarso era mais seguro? Desprotegido e carente, longe de todos, demanda o deserto. As dúvidas eram maiores do que as certezas. Saulo ignorava o sentido de passagens que sabia de cor.
Saulo afasta-se de Tarso e busca o deserto, o vaso busca o espaço vazio. Cristo passou quarenta dias no deserto, Saulo viveu cerca de dez anos paragens longínquas, silenciosas, arenosas. Entre dunas percebe a desolação, somem recursos, ilusões. Saulo compreende o que significa ser vaso, descobre o deserto interior. Deus revela-se em Saulo – o vaso – e o ultrapassa, o que o Criador tem a oferecer é infinitamente mais do que o revelado. A vida estala em lugares que são hostis à vida. Saulo, sentindo-se carente, pede-lhe mais. Cristo lhe responde que o já recebido lhe basta, o Salvador oferece o bastante a todos, cria no vazio. Saulo desperta para o tamanho de sua pequenez. Ao retornar à atividade de proclamar a Palavra, troca o nome Saulo por Paulo, pequeno. Em Paulo, o vazio se torna visível. Por não possuir nada, ele não tem nada de seu a oferecer, dá o que recebe. Ao dar, percebe-se enriquecer.