Viver a medicina

Uma das profissões mais requisitadas, nos últimos anos, em todo o mundo, exige muito tempo acadêmico, além de formação e atualização constantes. Você lembra de quantos médicos já passaram por sua vida?

O Dia do Médico é celebrado em 18 de outubro, e três médicos compartilham suas experiências de vida, carreira e fé.

Thomas Henrique Auel (RJ)

Sou formado em Medicina há 17 anos, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Após os seis anos de faculdade, foram dois de Residência Médica, especialização em Cirurgia Geral, e um ano de Residência em Cirurgia Videolaparoscópica. Continuei minha especialização em Cirurgia Hepatobiliopancreatica por mais quatro anos em um centro de Cirurgia Hepatobiliar e Transplante Hepático, no Hospital Federal de Bonsucesso, onde trabalho até hoje.

A possibilidade de ajudar e fazer o bem às outras pessoas foi, certamente, o princípio de tudo. A chance de ser um instrumento para trazer alívio ao sofrimento, promover o bem-estar ou mesmo possibilitar a cura de alguém, sempre me motivaram e conduziram para essa profissão, que é tão gratificante quanto desafiadora.

As dificuldades impostas pelas carreiras na área da saúde vão desde a longa formação, a dedicação, a necessidade de atualização, o constante convívio com o sofrimento de pacientes e familiares, as dúvidas e discussões sobre os melhores tratamentos, até à privação do tempo com a família, as angústias pessoais e o cansaço físico e mental.

Porém tudo isso é superado quando acreditamos fazer o melhor pelo paciente. O retorno vem quando observamos uma melhora clínica; quando minimizamos a dor e o sofrimento de um enfermo ou podemos dar conforto à sua família; quando uma infecção é tratada; ou quando uma cirurgia bem-sucedida promove a cura de um câncer. Todas essas pequenas ou grandes vitórias são combustíveis que impulsionam a prosseguir e vencer os desafios do próximo dia. Não há como descrever o tamanho da felicidade e do prazer do médico e de sua equipe quando recebem o sincero agradecimento do paciente e de seus familiares após um tratamento bem-sucedido.

A pandemia da Covid-19 veio trazer velhas e novas perspectivas aos médicos, bem como a toda a população. A possibilidade de uma pandemia viral sempre foi assunto das aulas nas faculdades de medicina e palestras sobre o futuro e desafios na “medicina moderna”. No entanto, ninguém estava preparado. Tudo era “como se fosse novo”. A medicina e a ciência foram postas à prova.

Os profissionais da saúde, em geral, tiveram a carga horária aumentada por não haver outra saída. O adoecimento de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas só fazia piorar as escalas de trabalho, já há muito extrapoladas em carga horária semanal. Enquanto muitos passaram um pouco mais de tempo em casa, com suas famílias, os médicos foram no sentido oposto, e com muito mais exposição a um vírus pouco conhecido.

Infelizmente perdi alguns amigos médicos e enfermeiros, vítimas da Covid-19. Mas o sofrimento dos familiares das vítimas do vírus foi muito mais solitário, por causa do isolamento social, das restrições aos velórios e aos sepultamentos. Os relatórios médicos diários eram feitos através de contato telefônico, já que os pacientes internados com Covid-19 nos CTIs e enfermarias não podiam receber visitas. Havia poucas formas de dar consolo e acolhimento aos familiares por causa das restrições protocolares.

O apoio psicológico veio de forma coletiva, dos próprios colegas de trabalho. Cada estatística de queda nas taxas de infecções, internações e mortalidade eram motivos de alento, alegria e esperança. Nessa hora, era importante pensar sempre como um “time”, em que todos lutam juntos para chegar a um objetivo comum, em que todos tinham que trabalhar juntos até a “tempestade” passar.

Felizmente nasci em um lar cristão e luterano. A fé me ajuda a manter a calma e a tranquilidade. Constantemente eu oro ao Senhor pedindo sabedoria para que eu tome sempre as melhores decisões. Há também momentos e escolhas difíceis no dia a dia de um cirurgião, e me lembro que Deus está sempre comigo: “Invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me glorificarás” (Sl 50.15). Ao mesmo tempo, é muito gratificante e confortador saber que oram em favor de nós, da equipe médica e hospitalar e também por nossas famílias. Isso aconteceu muito na pandemia e ainda está acontecendo.

Ter fé é importante. Muitos dos meus pacientes, quando em consulta, por saberem que sou cristão, me abordam com temas relacionados à fé, esperança, morte e vida eterna. Principalmente os pacientes com câncer trazem muitas reflexões e questionamentos a respeito de sofrimento, culpa, morte e tempo de vida. Muitas vezes surge a oportunidade de abordar pacientes ateus ou mesmo cristãos a respeito desses temas, algumas vezes em momentos muito delicados de suas vidas e no intercurso de seus tratamentos.

Em geral, os pacientes e familiares cristãos e que têm verdadeira fé, lidam melhor e com mais tranquilidade com seus diagnósticos, internações e tratamentos, com o medo, o sofrimento e com a terminalidade. Alguns pacientes têm muita dificuldade de aceitar e entender os tratamentos que são propostos, principalmente quando a fé não existe, a esperança é menor, ou quando a morte – ou a possibilidade desta – significam o fim de tudo.

O dia 18 de outubro serve para lembrar e saber que ainda há pessoas que dedicam a sua vida para cuidar da vida dos outros, cuidar do próximo. Todos aqueles que se sentem vocacionados a dedicar sua própria vida, seus estudos, sua juventude e muitas vezes o tempo da sua vida pessoal e familiar, em favor de cuidar de outras pessoas, podem ser médicos ou ser um profissional da saúde nas demais carreiras. Deus colocou a bondade e a vontade de ajudar o próximo em cada um. Basta, apenas, que aqueles que se sintam atraídos e vocacionados pela medicina estudem (muito), se dediquem e façam aflorar essa bondade através dessa profissão, na qual Deus nos permite fazer o bem ao próximo diariamente.

Gabriela Flor Nimer (RJ)

Trabalho há nove meses como médica, uma recém-formada nesta pandemia. Após o ensino médio, fiz um ano de cursinho e, logo em seguida, ingressei em Medicina. São seis anos de graduação, divididos em: ciclo básico, clínico e internato, com duração de dois anos cada.

O primeiro ciclo consiste em matérias como anatomia e farmacologia, que mostram como o corpo humano funciona na sua forma saudável, por assim dizer. No ciclo clínico, temos matérias de especialidades, como cardiologia, pediatria, ginecologia, dentre outras, cujo enfoque é como o corpo adoece, como se diagnostica, como se trata. No internato, praticamente moramos no hospital, porque, diferente dos quatro anos anteriores que consiste em carga teórica, agora a prática é maior. Temos maior contato com pacientes e conhecemos a rotina do hospital, bem como aprendemos a ter melhor raciocínio clínico e procedimentos médicos.

Depois são mais três anos de Residência Médica para ter o título de especialista em Neurologia, que é a área que desejo. Estou no primeiro ano dessa fase, cursando pelo Hospital da UFF (Niteroi/RJ), com foco em solidificar os conhecimentos em Clínica Médica.

Entendo que, para chegar ao meu objetivo, preciso passar por caminhos que muitas vezes me desanimam, pelo que exigem de mim, mental e fisicamente. A forma que encontrei para não me abalar e prosseguir é dar o meu melhor aos pacientes, dentro dos meus limites, pois eles são os mais fragilizados e isolados nesses tempos de pandemia.

Na emergência do hospital, todos os pacientes atendidos pelo Pronto Socorro, e que são internados, fazem coleta para o exame de Covid-19. Cansei de atender e internar pacientes assintomáticos, cuidar deles e, ao fim do dia, descobrir que eram positivos para Covid-19. Apesar da proteção com máscaras e vacinada com as duas doses, sentia um certo medo. Ainda mais quando ia para casa e encontrava familiares que nem eram vacinados. Mesmo com o contato com tantos pacientes assintomáticos e positivados, graças a Deus ainda não adoeci de Covid-19. No hospital, não temos esse apoio psicológico para lidar com as questões da pandemia, nem com relação à residência, então temos que buscar por fora.

Meus pais moram no Espírito Santo, mas consigo vê-los com uma certa frequência. Quando chego de viagem, é sem abraços e beijos, é necessário ficar com máscara no carro, tomar um banho completo e lavar as roupas usadas.

Ter fé é ter algo em que se firmar e perceber que não se está sozinho, apesar de não ter familiares e rostos conhecidos por perto. Apesar do momento crítico em que vivemos, tive Deus para me confortar e fortalecer, de forma que pudesse ajudar outras pessoas e também orar por pacientes, familiares e enlutados de pessoas com Covid-19. Nesse pouco tempo de vivência, compreendi que ser médica é cuidar do corpo e da alma do paciente também, dentro dos limites da nossa competência e habilidades.

Muitas pessoas escolhem a Medicina pelo status, mas existem formas de ganhar dinheiro sem essa rotina exaustiva e em menos tempo. Medicina é raciocínio clínico e montar quebra-cabeças a todo instante, bem como estudar diariamente. Além disso, é importante ter empatia pelo próximo, pelo paciente. O dia 18 sintetiza o trabalho que realizamos o ano inteiro, de estarmos disponíveis para os nossos pacientes 24×7 (horas x dias), em finais de semana e feriados. Mas também nos lembra que, apesar de médicos, somos filhos, pais, esportistas, religiosos, viajantes, enfim… seres humanos, mas com uma imensa responsabilidade, que é a de cuidar de outras vidas tão de perto.

Edison Glienke (SC)

Após ter feito Teologia e trabalhado como pastor da IELB no Rio de Janeiro, decidi fazer medicina para continuar cuidando de pessoas.

Estudei na UFMS, fiz três especializações e fui a Heidelberg, Alemanha, onde fiz MSc em Medicina, com trabalho prático sobre Saúde Materno-Infantil na África. Fui aceito no PhD de Medicina na London School, em Londres, mas com a recusa da CAPES, acabei cursando Doctorado em Medicina em Buenos Aires. Recebi também um título de Mestre em Teologia pelo Concordia Seminary, de Saint Louis, Estados Unidos, após um período de estudos naquele seminário. Tenho atuado como médico na África, na Amazônia e, nos últimos anos, em São Paulo e Santa Catarina, em serviços hospitalares de emergência.

Para mim, a medicina é um serviço (ministério) no reino de Deus como todos os demais que lidam com o ser humano: onde convivemos com o sofrimento, a dor e a morte diariamente. Trabalhar com isso significa meditar e reconhecer nossas próprias fraquezas, limitações, degeneração e morte iminente.

Não foi diferente durante a pandemia de Covid-19. Atendendo centenas de pessoas contaminadas por mês, seria praticamente impossível não ser contaminado. Foi tempo de me preparar de forma especial para servir a Deus, consciente de que isso poderia significar a minha própria vida ou a de meus familiares. Ficou muito claro que Deus dá a vida e a leva quando ele deseja. Ele é o Senhor, e agirá conforme a sua vontade e para a sua glória.

Conversamos muito em família. Todos pegamos Covid: minhas filhas, minha esposa, meus sogros, irmãos, cunhados… Mas Deus quis nos preservar nesta vida para o seu serviço, por enquanto, e ninguém morreu.

Tive que conviver de modo muito intenso com a morte de amigos, colegas e pacientes. Alguns lutando para conseguir respirar até serem intubados e sedados, outros submetendo-se calmamente aos desígnios do Criador. Foram tempos difíceis, de muito trabalho e reflexão. Senti diariamente o toque de prenúncio da Sétima Trombeta do Apocalipse. Infelizmente, como dizem as Escrituras, nem tal sofrimento fez as pessoas mudarem de vida. A grande maioria continua a crer no homem e suas ciências, especialmente na Medicina, como um “deus” capaz de dar a vida e a saúde, ao invés de reconhecer e louvar a Deus por isso. Isso é idolatria.

Aprendi a urgência de nosso testemunho cristão: Deus, o Senhor da vida, nos preparou “ar” e vida suficientes para a eternidade com a morte de seu Filho, nosso Salvador. Ainda que nos falte o ar por algum tempo, Deus há de soprar em nossas narinas o sopro da vida novamente. Quem “crer nele, ainda que morra, viverá!”. Aquele que confiar nos homens e em suas “ciências”, morrerá em seus pecados, e não haverá médico capaz de lhe acrescentar um dia sequer de vida, como dizem as Escrituras. Bendito o homem que confia no Senhor, pois não será enganado. Viverá eternamente.

Medicina, assim como Teologia, é um serviço nas mãos de Deus para melhor entender e cuidar dos sofredores e moribundos nesta vida. Mas a vida, seja aqui na terra ou nos céus, é dom de Deus, “para que ninguém se glorie”, como diz o apóstolo Paulo: nem o médico, nem o pastor, nem aquele que de Deus recebe saúde, vida longa e salvação eterna. Soli Deo Gloria!

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