No Credo Apostólico, afirmamos que Jesus Cristo “padeceu sob Pôncio Pilatos”. No Credo Niceno, confessamos que o Senhor Jesus Cristo foi “crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado”. Duas coisas chamam a atenção. Em primeiro lugar, nos Credos aparece o nome completo do governador romano: Pôncio Pilatos. No Novo Testamento, essa forma mais longa aparece apenas três vezes (Lc 3.1; At 4.27; 1Tm 6.13). Em geral, é apenas “Pilatos”, 52 vezes, no Novo Testamento. Também chama a atenção o fato de que, nos Credos, o padecimento de Cristo é associado unicamente a Pilatos. Não se faz referência ao julgamento de Cristo no tribunal judaico, mas Jesus padeceu também “sob Caifás”.
O julgamento de Cristo aparece nos quatro evangelhos. E aparece com ênfase. Alguém já disse que eles são “narrativas da paixão de Cristo com uma longa introdução”. Em Marcos, por exemplo, essa história ocupa quase uma terça parte da narrativa.
Na igreja, no culto, lemos anualmente dois relatos do julgamento de Jesus. Na sexta-feira santa, todos os anos, é lida a narrativa de João. No assim chamado “Domingo da Paixão” (ou de “Ramos”), cada ano é lido o relato de um dos três primeiros evangelhos. Neste ano, será o relato de Mateus. Pode-se fazer uma leitura mais longa (dois capítulos inteiros, a saber, Mt 26 e Mt 27) ou uma leitura mais breve (Mt 27.11-66). Recomenda-se fazer, na igreja, a leitura mais longa, envolvendo mais leitores, na forma de jogral.
Neste estudo, vou dar destaque às duas cenas de julgamento, a saber, “Jesus diante do Sinédrio” (Mt 26.57-75) e “Jesus diante de Pilatos” (Mt 27.1-26). Portanto, convido você a ler comigo esse trecho do evangelho de Mateus, começando em Mateus 26.57.
Depois de ter sido preso, Jesus foi levado ao palácio de Caifás (Mt 26.57), onde se realizaria uma reunião do Sinédrio. Como Mateus (ao lado de Marcos e Lucas) não faz referência a lanternas e tochas (Jo 18.3), o leitor ainda não sabe que essa reunião ocorreu durante a noite; isso ficará claro em Mateus 27.1.
Quem fazia parte do Sinédrio? Eram 70 membros mais o sumo sacerdote, que presidia. Mateus menciona escribas, anciãos e principais sacerdotes. Outro texto do Novo Testamento (At 23.6) informa que o Sinédrio se compunha de fariseus (anciãos e escribas) e saduceus (os principais sacerdotes).
O evangelista menciona Pedro (v.58), e com isso prepara o leitor para o que irá acontecer com ele. Na verdade, essa negação de Pedro deve ter ocorrido na mesma hora em que Jesus estava sendo julgado pelo Sinédrio, mas os dois episódios precisam ser descritos um de cada vez. Assim, Mateus (e com ele Marcos) traz a negação de Pedro depois do julgamento de Jesus diante do Sinédrio; em Lucas, a negação de Pedro é narrada antes.
Ao falar sobre a sessão do Sinédrio, Mateus cita as testemunhas. Para ele, o que procuravam era “algum testemunho falso”, e as muitas testemunhas que foram apresentadas eram “testemunhas falsas” (v.60). Transparece o fato de que o tribunal judaico basicamente ouvia testemunhas, sem poder recorrer ao que se chama de “prova material”. Duas testemunhas declararam que Jesus tinha afirmado que podia destruir o santuário de Deus e reconstruí-lo em três dias, o que parece ser um eco de João 2.19. A concordância de duas testemunhas era suficiente para condenar alguém. Mateus não diz diretamente que esse testemunho era falso, mas também não afirma (como Mc 14.59) que não havia concordância entre o que as testemunhas diziam.
Indagado se queria comentar o depoimento das testemunhas, Jesus guardou silêncio. O leitor cristão poderia ter esperado que Mateus citasse Isaías 53.7 (“foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca”), mas não é o que acontece. O silêncio de Jesus se repetirá diante de Pilatos (Mt 27.14), deixando o governador admirado. No entanto, Jesus também falou, tanto no Sinédrio (Mt 26.64) quanto no tribunal romano (Mt 27.11). Pode-se concluir que, diante de acusações sem fundamento, Jesus ficou calado; ao receber perguntas que permitiam fazer “boa confissão” (1Tm 6.13), Jesus falou.
Quando o sumo sacerdote pediu a Jesus que, sob juramento, respondesse se ele era o Cristo (ou o Messias), o Filho de Deus, a resposta foi um ambíguo “tu o disseste” (Mt 26.64). A resposta é ambígua, porque poderia significar simplesmente “é só o senhor quem está dizendo isso (e não eu)”. Mas a resposta pode também significar “é isso mesmo que o senhor acabou de dizer”. Normalmente, se entende que Jesus disse “sim”. Mas é um “sim” com uma qualificação. É um “sim, sou o Cristo”, mas nos termos das palavras que seguem: “Desde agora, vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu”.
Essa resposta de Jesus, que combina palavras de Daniel 7.13 e Salmo 110, foi interpretada como blasfêmia e levou à sua condenação. Mas por que era blasfêmia? Porque o sumo sacerdote entendeu que, ao falar sobre o Filho do Homem, Jesus estava se referindo a si mesmo. E, se alguém que poderia ser, no máximo, um “candidato a Messias” falasse sobre estar à direita de Deus (em posição de suprema autoridade) e vir nas nuvens do céu (como Juiz), isso só poderia ser a mais pura blasfêmia! Cabe ressaltar que, naquele contexto, nas palavras e aos ouvidos do sumo sacerdote, “Filho de Deus” significava apenas “alguém que é especialmente querido para Deus”, enquanto “Filho do Homem” era uma reivindicação de divindade.
Pronunciada a sentença (“é réu de morte” – v.66), Jesus foi torturado. Cuspiram no rosto dele e bateram nele. A cena do “Profetize! Quem foi que bateu em você?” pode ser explicada à luz de Isaías 11.3 (“não julgará segundo a aparência”). Segundo se pensava na época, o Messias, quando viesse, poderia julgar casos, mesmo estando de olhos vendados. No caso de Jesus, o teste era pura zombaria.
Antes de narrar que Jesus foi entregue ao governador Pilatos (Mt 27.2), o evangelista conta o que aconteceu do lado de fora, no pátio do palácio: o apóstolo Pedro negou Jesus três vezes. Por mais marcante que seja essa cena, ela teve um final feliz, porque o choro amargo de Pedro são as lágrimas do arrependimento. Não foi o que aconteceu com Judas. “Tocado de remorso” (v. 3), foi falar com os inimigos de Jesus, que não lhe deram atenção. Alguém dirá que ele deveria ter voltado para Jesus. Seja como for, Pedro fica “feio na foto”, se comparado com Jesus, mas fica “bem na foto”, em comparação com Judas.
Ao relatar o que aconteceu com Judas, o evangelista Mateus faz a única citação bíblica em todo esse relato do julgamento de Jesus. Ou seja, o tema do cumprimento de profecias, tão característico do evangelho de Mateus, aparece somente em Mt 27.9-10. Pode-se dizer que, mesmo naquilo que é tão difícil de explicar, Mateus encontra um propósito. Em vez de tentar explicar o gesto de Judas, ele remete ao que foi dito por meio do profeta.
Mateus dá a entender que houve uma segunda sessão do Sinédrio, “ao romper do dia” (Mt 27.1). Segundo a tradição, um veredicto de condenação à morte só podia ser pronunciado durante o dia, e não numa sessão noturna. Ratificada a decisão de matar Jesus, eles o levaram ao governador Pilatos.
Pilatos era oficialmente chamado de praefectus (“prefeito”), mas a designação popular era “governador”. Ele exerceu o cargo durante dez anos (de 26 a 36 d. C.). Mateus gosta de usar esse título de “governador” (oito vezes!). Ele não explica por que Jesus foi entregue a Pilatos. Isso aparece em João: os judeus não tinham o direito de matar ninguém (Jo 18.31). Só cidades livres e autoridades romanas tinham o assim chamado ius gladium (ou direito de sentenciar alguém à morte).
Para nossa surpresa, Pilatos logo pergunta a Jesus se ele era “o rei dos judeus” (27.11). Habilmente, os líderes do povo haviam transformado uma condenação de cunho religioso (blasfêmia) em acusação de caráter político. O leitor percebe que não aparecem testemunhas. Num tribunal romano, o que se costumava fazer era ouvir a acusação e permitir que o réu se defendesse. Diante da pergunta, mais uma vez Jesus respondeu com um ambíguo “tu o disseste”. Diante das acusações dos principais sacerdotes (v. 12), Jesus nada respondeu.
Depois de uma conversa com Jesus, que deve ter ocorrido no interior do palácio, o governador Pilatos dialoga com o povo. (Esse “povo” dificilmente seria o mesmo que, na entrada de Jesus em Jerusalém, gritava “Hosana”. Havia mais de 100 mil pessoas em Jerusalém, por ocasião da Páscoa!) Diante do costume de soltar ao povo um preso, Pilatos (que, segundo o relato de Mateus, em momento algum declarou a inocência de Jesus; isso aparece em Lucas), talvez pressentindo que aquele povo “queria ver sangue”, ofereceu um bandido famoso, chamado “Jesus Barrabás” (Mt 27.17). Seria a troca de um Jesus pelo outro. (Como assim, “Jesus” Barrabás? Este é o texto da Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Baseia-se em poucos manuscritos gregos, mas tem boa chance de ser original. Acontece que Barrabás é apenas um sobrenome – Bar-Abbas, “filho de Abbas”. E o nome “Jesus Barrabás” dificilmente teria sido preservado, mesmo em poucos manuscritos, se por trás disso não houvesse algum fundamento histórico.)
Enquanto o povo se preparava para dizer que Barrabás deveria ser solto, Pilatos, já na postura em que pronunciaria seu veredicto, isto é, “sentado no tribunal”, recebeu uma mensagem da sra. Pilatos (que, na tradição cristã posterior, recebeu o nome de Procla). Falando sobre um pesadelo que tivera, ela tratou de, como dizemos, “botar pressão” sobre o marido, para que não se envolvesse com Jesus, “esse justo” (Mt 27.19). Mas os líderes, membros do Sinédrio, convenceram o povo a pedir a soltura de Barrabás. Jesus foi condenado a morrer na cruz.
Pilatos ainda patrocinou uma cena dramática: lavou as mãos diante do povo, pretextando inocência (Mt 27.24). Como alguém afirmou, “tentando entrar para a história discretamente, como um sábio administrador, Pilatos acabou embalsamado no Credo Apostólico”. Significa que Pilatos tem culpa? Sim. Jesus “padeceu sob Pôncio Pilatos”. O responsável legal pela morte de Jesus é Pilatos. Ele assinou a sentença. O responsável moral são os líderes judeus daquele tempo, que pediram a condenação. Neste sentido, pode-se também dizer que “Jesus padeceu sob Caifás”. Mas, num sentido teológico, os culpados somos TODOS NÓS.
Porém mais importante do que identificar os culpados é apontar os beneficiados. Não custa repetir as palavras do Credo Niceno: “ele foi crucificado POR NÓS sob Pôncio Pilatos”.