As intensas chuvas nos últimos meses trouxeram muitos sofrimentos a muitas pessoas. Em abril, no estado do Espírito Santo; em maio, segundo a defesa civil, 452 municípios do Rio Grande do Sul foram afetados, alguns deles, devastados. No mesmo período, nos Estados Unidos, uma das piores temporadas de tornados atingiu 12 estados, e a Alemanha sofre as piores enchentes dos últimos 30 anos. A criação de Deus está gemendo enquanto aguarda a casa eterna (2Co 5.1ss).
No princípio, Deus manifestou a sua glória quando criou o ser humano à sua imagem e semelhança, estabelecendo-o de forma distinta dentro do mundo: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e sujeitem-na. Tenham domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1.27,28).
Quando falamos de Deus, nos referimos ao mistério da Trindade e reconhecemos a tríplice obra da criação, redenção e santificação. O Credo Apostólico é um belo resumo da fé na obra da Trindade, muito bem exposta no Catecismo Menor de Lutero. Em sua explicação para o Credo Apostólico, Lutero traz importantes ensinos. O primeiro artigo – da criação – revela tudo aquilo que está disponível para nós, o que vem diretamente de Deus e o que ele nos concede por meio da criação e das pessoas criadas: “olhos, ouvidos e todos os membros… me dá comida, bebida, bens… supre-me todo o necessário…”. O segundo artigo, da redenção, expressa de forma abrangente a obra de Jesus aplicada à nossa vida diária. E o terceiro artigo, da santificação, nos mostra a atuação do Espírito Santo, aquele que veio sobre a igreja no Pentecostes e atua por causa da cruz de Jesus Cristo naqueles que creem, enviando-os para dentro da criação, onde a fé toma corpo e se torna visível por meio de ações que manifestam a misericórdia de Deus.
O ser humano foi criado não apenas para se relacionar com Deus, mas também para se relacionar com as criaturas e com toda a criação. A desobediência do ser humano trouxe sofrimentos, não apenas a si mesmo, mas a toda a criação. Em Jesus, o mundo é reconciliado com o Criador.
As calamidades nos assustam, entristecem e desestabilizam, mas desde a queda em pecado a natureza sofre calamidades que geram o caos. Uma coisa é certa: Deus não foi afetado. Ele é o mesmo ontem, hoje e sempre. A Igreja Evangélica Luterana do Brasil, firmada na doutrina da teologia da cruz, sabe que Deus continua governando o mundo. Por isso nós não precisamos fazer perguntas: Para quê? Por que tudo isso? Onde está Deus? Não! A teologia da cruz não nos obriga a fazer perguntas. A Teologia da Cruz nos convoca a confiar em Cristo.
Por causa da teologia da cruz nós fixamos nossos olhos no que Cristo fez e apontamos para ele. O pecado corrompeu e rompeu a perfeita relação com o Criador. Mas o batismo nos recoloca no propósito inicial de Deus, agindo por nós (redenção). Recriados para viver à “imagem e semelhança”, Deus age em nós nos conduzindo nessa fé, alimentando essa fé no culto (o servir de Deus – gottesdients) e por meio da santa ceia (santificação). Assim somos enviados por Deus para cultivar e guardar a sua criação; assim Deus age por meio de nós e a sua misericórdia é compartilhada com as pessoas por meio de nós (cuidar da criação).
É preciso cuidar para não ser engolido por um falso evangelho das obras altruístas, ou, pior, do humanismo secular que exclui Deus da criação e de todo o trabalho que se realiza em favor do próximo. O cristão luterano sabe que a misericórdia compartilhada no seu trabalho é a misericórdia divina. A misericórdia de Deus se mostra por meio do seu povo.
Jesus afirmou no sermão do monte: “Vocês são o sal da terra. Vocês são a luz do mundo”. E Mateus 5.16 resume, dizendo: “para que vejam as boas obras que vocês fazem e glorifiquem o Pai de vocês, que está nos céus”. Sim, as ações do povo de Deus revelam Deus agindo em favor da sua criação. O que a igreja faz pelas pessoas demonstra a presença de Deus e o seu cuidado com a vida.0
Nessa catástrofe, é visível o movimento de ações misericordiosas sendo realizadas pelo povo da igreja: no estado do Rio Grande do Sul, membros e pastores de nossas congregações recebendo doações e compartilhando. E em todo o país, irmãos luteranos e não luteranos mobilizados, inclusive junto com o poder público, enviando doações. Também as organizações sociais recebendo e compartilhando. Diante disso, alguém me falou: “Pastor, se o que estamos fazendo não é o evangelho, então não sei o que é evangelho”. Confesso que precisei parar, ouvir, deixá-lo falar mais um pouco e até interromper: “Calma, irmão, vamos entender melhor!” (E aqui eu resumo a nossa conversa). A ação social e a resposta ao desastre não é o evangelho. Exatamente! O trabalho que realizamos não é o evangelho. O evangelho é sobre Jesus! O evangelho é o que Jesus fez e faz para salvar pessoas. O que nós fazemos testemunha o evangelho.
Por causa do evangelho, nós, cristãos, trabalhamos. O trabalho é a manifestação do evangelho que nos move. Viver, servir, amar, ser pequenos Cristos, como afirmou Lutero, junto àqueles a quem estendemos as mãos. Cristo é o evangelho, a obra de Cristo na cruz para a salvação da humanidade, para perdão dos meus e dos seus pecados. Este é o evangelho!
Fiquemos atentos, porque, às vezes, quando pensamos que nossas ações são o evangelho, nós estamos nos colocando no lugar de Cristo e deixando de fazer o é próprio da igreja: testemunhar e pregar o evangelho. A catástrofe colocou multidões de joelhos, sem dinheiro, poder, conhecimento. Essa condição não vai salvar alguém. O impacto da catástrofe não salva. A igreja precisa entender que é preciso estender a mão, a mão de Cristo. Estender a mão e apontar para Cristo e sua obra de salvação A catástrofe mostrou que tudo é frágil e passageiro. Com coragem, sabedoria e alegria pregamos Cristo, o inabalável Senhor e Salvador.
Cristo é a segurança. Todas as pessoas precisam saber disso! A igreja aponta para a cruz! Isso não é aproveitar-se da vulnerabilidade das pessoas, mas é ser igreja. Ser igreja no meio do caos não é padecer numa organização social, mas é ser pregadora da cruz de Cristo, da obra de Cristo e acolhedora na sua misericórdia. O trabalho da igreja não termina quando as pessoas estiverem voltando a uma vida mais confortável em sua condição material e social. A igreja trabalha para preservar a vida de todas as pessoas, e “todos conhecerão que vocês são meus discípulos: se tiverem amor uns aos outros” (Jo 13.35).
A igreja terá cumprido um propósito quando as pessoas estiverem diante do altar, tomando a santa ceia, sendo servidas pelo Senhor no culto, integradas ao corpo de Cristo. A igreja anuncia a salvação. Ela precisa estar atenta para que as pessoas impactadas pelo amor de Deus, recebido por meio do trabalho de misericórdia, agora lhes ensine de forma clara e direta sobre quem é este Deus e como ele salva as pessoas.
O trabalho da igreja é preparar a pessoa para morrer melhor, para estar com Cristo, onde é incomparavelmente melhor. Nem por isso a igreja pode ignorar o sofrimento. Por causa deste Cristo a igreja atua firme e de forma abundante e diligente para diminuir o sofrimento. O trabalho da igreja não se limita ao campo físico e material. Ela aponta para Cristo, o Salvador. A igreja quer o que Jesus quer – a salvação das pessoas. As ações de misericórdia abrem portas, marcam a vida das pessoas, mostram a bondade de Deus e exercitam a fé do cristão. As ações são a fé ativa no amor. Mas o trabalho da igreja segue: ela anuncia Jesus para que a fé venha pelo ouvir.
As obras de misericórdia podem ser feitas por todas as pessoas, e elas não salvam a quem as realiza ou a quem as recebe. Só Jesus salva. Por isso, o trabalho da igreja em todas as suas ações, das menores às maiores, mostra Cristo, o Salvador. Cada congregação precisa agir com sabedoria para que todas as pessoas que receberam apoio sintam que a igreja as quer no culto, integradas ao corpo de Cristo e tomando a ceia diante do altar, mediante a devida instrução e profissão de fé.
Deus está fazendo grandes coisas por meio de nós. Ele agiu por nós, nos salvando na cruz. Ele age em nós por meio da Palavra e do sacramento, nos mantendo nesta nova vida. Jesus age por meio de nós, cuidando de toda a criação, em todos os lugares, em todos os momentos, até nos mais cruciais.
E A IGREJA? Ela estava no lugar antes do desastre. Ela está no lugar atuante durante o desastre e ela permanece atuante depois do desastre, porque Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre. E a igreja foi instituída para que o povo possa ver o Cristo ressuscitado e por ele ser servido com misericórdia para a salvação.
Que Deus abençoe a sua vida, seu trabalho e engajamento. Por causa da cruz de Cristo, a misericórdia de Deus chega às pessoas por meio de cada um de nós.
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