Jean Regina
@jeanregina
Thiago Vieira
@th_vieira
Outubro de 1525 foi um tempo de grande tensão na Alemanha. A Guerra dos Camponeses, iniciada no ano anterior, alcançava seu auge. Inspirados em parte pelas ideias da Reforma, milhares de trabalhadores rurais se levantaram contra a nobreza e o clero, reivindicando transformações sociais profundas. Entre eles estava Thomas Müntzer, líder carismático e radical, que pregava uma sociedade sem distinções entre senhores e servos e apelava para supostas revelações diretas do Espírito como fundamento de sua ação política.
Martinho Lutero, no entanto, seguiu outro caminho. Em seu escrito Contra as hordas assassinas e ladrões dos camponeses, publicado naquele contexto, condenou a violência da revolta e rompeu definitivamente com Müntzer. Para o reformador, a liberdade do evangelho não poderia ser confundida com libertinagem social nem servir de pretexto para a desordem. Sua posição, firme e até controversa, custou-lhe críticas de muitos lados, mas representou um esforço consciente para evitar que a Reforma fosse identificada como uma simples rebelião política ou uma utopia igualitária.
O resultado histórico foi devastador: a repressão foi implacável, e dezenas de milhares de camponeses perderam a vida. Lutero foi acusado de estar do lado dos príncipes, mas seu alvo principal era proteger a distinção essencial entre a fé e a política, entre a Reforma espiritual e as revoluções sociais. Na sua compreensão, Deus governa o mundo por dois “reinos”: o espiritual, em que a Palavra liberta e orienta consciências; e o temporal, em que a lei civil e a autoridade legítima preservam a ordem. Misturar essas esferas seria colocar em risco tanto o evangelho quanto a sociedade.
Esse episódio nos lembra que a liberdade de consciência não se traduz automaticamente em revolução política. Para Lutero, a consciência só é verdadeiramente livre quando está cativa da palavra de Deus. Assim, a fé não legitima violência, mas chama à responsabilidade no serviço ao próximo, no cumprimento das vocações e na obediência às autoridades, desde que estas não obriguem a pecar. A liberdade cristã não é anarquia, mas vida ordenada sob Cristo.
Cinco séculos depois, essa lição continua atual. Vivemos num tempo em que a religião é usada, muitas vezes, como arma ideológica ou instrumento de poder, seja para impor visões de mundo, seja para insuflar polarizações. De um lado, há os que querem expulsar a fé da esfera pública; de outro, há os que a reduzem a instrumento de luta política. Lutero nos recorda que a Reforma não foi revolução social, mas renovação espiritual. E que, a partir de consciências libertas pelo evangelho, brotam mudanças duradouras, capazes de alcançar também a vida em comunidade e na sociedade.
Celebrar a memória de 1525 não significa endossar cada palavra dura de Lutero contra os camponeses, mas reconhecer sua coragem em afirmar que a verdadeira liberdade não nasce das armas nem da imposição, e, sim, da Palavra que liberta corações. Essa é a liberdade que permanece como fundamento para a vida cristã e para a convivência pacífica: uma liberdade que rejeita a tirania e a violência, mas que também não se dissolve no individualismo. Em Cristo, a consciência encontra repouso — e é somente essa consciência cativa da Palavra que é, de fato, uma consciência livre.
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