A Bíblia relata muitas ocasiões em que Deus fala, fazendo ouvir sua voz. A primeira vez que a Escritura menciona que a “voz” de Deus foi ouvida situa-se no contexto do mais triste acontecimento da história humana: quando Adão e Eva rejeitaram o caminho que Deus lhes havia proposto. Era a queda em pecado! O livro de Gênesis nos relata que, após terem desobedecido, Adão e Eva ouviram a voz de Deus e sua reação foi esta: “Então se esconderam dele, no meio das árvores. Mas o Senhor Deus chamou o homem e perguntou: — Onde é que você está? O homem respondeu: — Eu ouvi a tua voz, quando estavas passeando pelo jardim, e fiquei com medo porque estava nu. Por isso me escondi.” (Gn 3.8-10). A voz de Deus gerou medo!
Mesmo sem utilizar o termo “voz”, Gênesis deixa claro que foi pelo seu falar que Deus criou todas as coisas – “Disse Deus: haja luz, e houve luz” (Gn 1.3). Por diversas vezes o texto bíblico repete a sequência “Disse Deus…” e “Assim se fez”! A voz de Deus – o seu falar – é o instrumento pelo qual ele realiza sua maravilhosa obra da criação. Mas esta mesma voz, que produz vida variada e bela, para Adão e Eva tornou-se fonte de temor.
Se alguém disser: “Gostaria tanto de ouvir a voz de Deus”, é bom lembrar que a mesma voz que cria vida também traz temor. Por que é assim? Se você ouvir a voz de Deus hoje, também terá medo? Ou irá se regozijar pela obra que ele realiza?
Os profetas ouviram a voz de Deus
Isaías relata um impressionante evento, em que lhe foi permitido ver o Senhor e Serafins que cantavam glórias a Deus. Diz o profeta: “Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim.” (Is 6.8). A voz de Deus comissiona o profeta para anunciar a sua Palavra aos homens. Porém não nos deve passar despercebido o que ocorreu imediatamente antes desta convocação. Diante da glória de Deus, Isaías se dá conta de que é pecador e teme. Mas algo acontece que permite a Isaías ouvir a voz de Deus e responder positivamente: “Então, um dos serafins voou para mim, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; com a brasa tocou a minha boca e disse: Eis que ela tocou os teus lábios; a tua iniquidade foi tirada, e perdoado o teu pecado.” (Is 6.6,7). A voz foi do Serafim, mas o anúncio veio de Deus. É a voz do perdão, que restaura, consola e ergue o pecador, ao ponto dele poder ouvir a voz diretamente do Senhor, sem temor. A voz de Deus traz perdão e comissiona para a missão!
Elias ouviu a voz de Deus. Uma das ocasiões foi quando o profeta se considerava sozinho em meio a um povo que se inclinava para falsos cultos. Nesse tempo de crise, em que parecia que tudo ia mal, a voz de Deus vem e conforta o profeta. Ela anuncia que Deus continua ativo em meio ao seu povo e que ele estava preservando muita gente além de Elias, que, a exemplo do profeta, não se curvava diante do falso deus Baal (1Rs 19.13-18). A voz de Deus traz conforto e fortalecimento!
O profeta Miquéias também testemunhou a manifestação da voz de Deus (Mq 6.9), neste caso confrontando o povo de Judá por causa do seu pecado. É uma voz que anuncia juízo e condenação a um povo sem arrependimento, e cuja vida diária refletia sua impiedade. A voz é dura e expressa toda a ira do justo Deus diante do pecado. Mas o resultado é bom! No capítulo 7, o profeta fala em nome da cidade, em nome do povo pecador. A voz acusatória produz contrição e leva o povo a olhar novamente para a fonte da vida e salvação (Mq 7.7). A voz de Deus denuncia e condena o pecado, para que os que ouvem se arrependam e sejam trazidos de volta à comunhão com Deus.
A voz de Deus muda a história e a vida das pessoas
Vivemos em um tempo de patrulhamento do “politicamente correto”. Falar em pecado e culpa ofende! Na verdade, o tema da culpa só parece relevante quando há tragédias causadas pela maldade humana. Mas para o “cidadão comum”, falar em culpa por vezes é até ofensivo. Num contexto assim, não é de se surpreender que alguns filmes apresentem uma figura caricata de Deus, que fala como e o que as pessoas esperam ouvir dele. Na década de 70, houve um filme bastante popular, cujo título em Português era “Alguém lá em cima gosta de mim”. O filme apresentava Deus como um velhinho de voz mansa e agradável. Não havia qualquer chamado ao arrependimento. Cada pessoa podia viver conforme o próprio coração. Para este “Deus”, as pessoas eram boas por natureza. E ao ser perguntado sobre Jesus, se seria ele seu filho, “Deus” respondeu: “Sim, assim como Maomé, Buda, etc.”. Eis aí um “Deus” universalista, macro ecumênico, enfim, politicamente correto!
Um episódio marcante na história de Israel ilustra bem o efeito provocado pela voz de Deus nas pessoas. O povo de Deus havia sido libertado do Egito. No monte Sinai, Deus falou a todo o povo, “[…] do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz […]” (Dt 5.22). Por intermédio de Moisés, entregou os dez mandamentos em duas tábuas de pedra. O que chama a atenção é a reação que o povo de Israel teve diante do falar de Deus. Tendo ouvido a voz que vinha do Sinai, os líderes das tribos disseram a Moisés: “Eis aqui o Senhor, nosso Deus, nos fez ver a sua glória e a sua grandeza, e ouvimos a sua voz do meio do fogo; hoje, vimos que Deus fala com o homem, e este permanece vivo.” (Dt 5.24). E continuaram, agora com um pedido para Moisés: “Agora, pois, por que morreríamos? Pois este grande fogo nos consumiria; se ainda mais ouvíssemos a voz do Senhor, nosso Deus, morreríamos. Por que quem há, de toda carne, que tenha ouvido a voz do Deus vivo falar do meio do fogo, como nós ouvimos, e permanecido vivo?” (Dt 5.25,26).
Esta palavra do povo de Israel pode soar um tanto estranha, principalmente para pessoas que anseiam por ouvir diretamente a voz de Deus também hoje. Mas a reação dos israelitas não foi absurda. Vejam como Deus respondeu a Moisés diante desta manifestação temerosa de Israel: “Eu ouvi as palavras deste povo, as quais te disseram; em tudo falaram eles bem. Quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos, para que bem lhes fosse a eles e a seus filhos, para sempre!” (Dt 5.28,29).
Esta atitude do povo de Israel ensina algo para o povo de Deus de hoje e de todos os tempos. Ouvir a voz de Deus é sempre algo maravilhoso, mesmo que usando meios ordinários, comuns, que talvez até possam parecer corriqueiros. Ouvir a voz de Deus faz toda a diferença na vida de alguém. E, diga-se de passagem, quando o santo Deus fala a pecadores, ficar vivo já é um privilégio!
Deus fala, quer e precisa ser ouvido
A Escritura apresenta o Deus que fala e que precisa ser ouvido, mesmo ao falar aquilo que não agrada aos ouvidos e ao coração naturalmente escravizados pelo pecado. Na saída do Egito, Israel teve à frente um grande desafio, e o sucesso da jornada não dependia das suas próprias forças, mas de ouvir o que Deus dizia (cf. Ex 19.5). Desprezar a voz de Deus significaria ruína para este povo, que por vezes parecia não entender a destruição que sobreveio às nações rebeldes (Dt 8.20). Ouvir a voz de Deus atenta e cuidadosamente era vital para que o povo permanecesse em paz, como também Samuel mais tarde o admoestou (1Sm 12.14,15).
A história do povo de Deus também alerta para o fato de falsas vozes se levantarem, apresentando-se como se fossem a voz do Senhor. Israel foi avisado por Deus de que falsos profetas apresentariam sinais e prodígios para legitimar seu anúncio (Dt 13.1-3). Mas era preciso ouvir a voz de Deus (v. 4, 18). Para tanto o povo deveria estar atento ao conteúdo desta voz! Ao convidarem o povo a seguir outros deuses, mesmo tendo realizado sinais espantosos, aqueles profetas demonstravam não veicular a voz do Senhor, mas sua própria voz, carregada do erro e do mal! O conteúdo da mensagem, mais do que algum sinal que a acompanhe, é o critério fundamental para o povo de Deus reconhecer a voz do seu Senhor.
Você gostaria de ouvir a voz de Deus diretamente? Mas já pensou se esta voz lhe dissesse algo que desestabilizasse sua vida? Abraão ouviu a voz de Deus pedindo algo profundamente difícil – entregar o filho Isaque em sacrifício. O que fazer diante de uma voz que de tal forma transtorna a vida? Sabemos como Abraão agiu. Ele sabia quem estava lhe falando. Por isso obedeceu à difícil e desafiadora Palavra do Senhor. O resultado decorrente não foi apenas benéfico para Abraão e Isaque. Trouxe bênção para todos os povos (Gn 22.18; 5), pois foi de Abraão que Deus fez vir aquele por meio de quem ele viria a falar de forma definitiva. A voz de Deus questiona convicções humanas enraizadas, mas tem um propósito de vida e bênção que vai além da expectativa humana. Esta voz se concretiza no cumprimento das promessas feitas ao povo de Deus no Antigo Testamento.
O autor aos Hebreus reflete sobre esta verdade ao dizer: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hebreus 1.1,2). O Filho é o perfeito “canal” pelo qual Deus fala! Jesus é chamado de “Verbo” (= Palavra) no início do Evangelho conforme João: “No começo aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus. Desde o princípio, a Palavra estava com Deus. Por meio da Palavra, Deus fez todas as coisas, e nada do que existe foi feito sem ela” (Jo 1.1-3). Jesus é o Verbo, a Palavra, pois ele é tanto o Deus que nos fala, como o conteúdo do falar divino! Ouvir a voz de Deus é ouvir Jesus. É ouvir o que nos é dito por Jesus. É ouvir o que nos é anunciado a respeito de Jesus!
É possível ainda hoje ouvir a voz de Deus?
Por meio dos textos bíblicos referidos acima, podemos notar que a “voz de Deus” é, nada mais, nada menos, a sua Palavra. É uma palavra audível, perceptível, concreta! Não está na imaginação das pessoas, mas Deus efetivamente está falando. E no seu falar, Deus não vem para satisfazer curiosidades humanas ou para reafirmar convicções que as pessoas já tenham em sua natureza pecaminosa. A voz de Deus comunica algo que afeta diretamente o rumo da vida de cada um de nós. Ela condena o pecador em sua incredulidade e alerta o povo contra o afastamento do Deus verdadeiro. Mas esta mesma voz também conforta e vivifica pelo anúncio do perdão e da presença misericordiosa de Deus. A voz de Deus é ação! É a ação de Deus em vir até as pessoas e efetuar nelas a sua obra.
Antes de deixar este mundo visivelmente, o Salvador prometeu algo que garantiria a continuidade da voz de Deus sendo anunciada e ouvida: “Quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13,14). Assim o apóstolo Paulo pôde dizer com confiança: “… ninguém que diz ‘Que Jesus seja maldito’ pode estar falando pelo poder do Espírito de Deus. E ninguém pode dizer ‘Jesus é Senhor’, a não ser que seja guiado pelo Espírito Santo” (1Co 12.3).
O guiar do Espírito Santo não apenas se fez concreto na vida daqueles discípulos-apóstolos. Mas assim como fizera com os profetas, testemunhas da voz do Deus verdadeiro, o Consolador viria para guiar os apóstolos no anúncio da voz de Deus, na proclamação e na escrita dos livros do Novo Testamento. Que bênção extraordinária tem a humanidade nos livros da Escritura Sagrada – a voz de Deus que vem até nós. Como disse alguém sabiamente, é o único livro cuja leitura sempre acontece na presença do autor! Por isso, aproveite as oportunidades e ouça Deus lhe falando nas páginas da Escritura Sagrada.
Lembre que o falar de Deus para nós não se trata simplesmente de nos “passar informações”. O falar de Deus é ação! Deus age por meio do seu falar. Você já parou para pensar que no seu Batismo Deus lhe falou? Sim, falou, e, assim como na criação do mundo, quando falava e as coisas aconteciam, no seu Batismo ele falou pela boca de um dos seus mensageiros e algo extraordinário aconteceu. Você foi trazido do reino das trevas para o reino da luz, passou da morte para a vida, foi tirado da incredulidade para a fé. Reflita sobre o seu Batismo, que não é um ato que ficou no passado, mas é ação de Deus que tem valor hoje, cada dia, para lhe dar novidade de vida e união com Cristo (Rm 6.3-5). Ouça a voz de Deus ao relembrar o seu Batismo.
Deus lhe fala por meio dos seus mensageiros
Deus lhe fala por meio dos seus mensageiros quando estes fielmente lhe trazem a Palavra do próprio Deus, conforme revelada na Escritura e que tem em Cristo e sua obra o centro e mais fundamental ensino. Já aos discípulos, Jesus concedeu seu Espírito Santo para que eles anunciassem o perdão de maneira clara e objetiva: “Recebei o Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos.” (Jo 20.21,22). O mesmo Jesus já garantira a seus discípulos: “Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e quem vos rejeitar, a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar rejeita aquele que me enviou.” (Lc 10.16). Deus está falando hoje, por meio dos seus mensageiros, que ele próprio envia com sua Palavra. Ouça o que Deus lhe diz! Ouça a sua voz nas palavras que o seu pastor proclama à luz da Escritura Sagrada.
Deus fala por meio da Santa Ceia!
Os primeiros cristãos entenderam a importância da Santa Ceia, ao ponto de terem nela, o “partir do pão” (cf. At 2.42; 20.7), o principal motivo para se encontrarem, isto é, para o culto. E por que isso? Porque na Ceia os cristãos sabem que estão recebendo o verdadeiro corpo e sangue de Jesus, que são dados para perdão dos pecados (Mt 26.26-28; 1Co 11.24,25). Na Santa Ceia Deus está falando – Deus está agindo! – para o benefício dos seus filhos, alimentando-os na fé por meio do perdão. Ouça a voz de Deus na Santa Ceia. Ele está falando para seu fortalecimento, amparo e conforto para a jornada.
Pentecostes! Festa da Igreja para comemorar que Deus continua falando. Por causa da obra completa de Jesus para redimir o pecador, diante de sua gloriosa ressurreição, vitória sobre a morte e manifestação de sua majestade, ele concede o Espírito, o Consolador. E ele continua falando – lembrando o que Jesus fez e ensinou e levando pessoas a crerem e confessarem que Jesus é o Senhor. Deus não está calado. É preciso ouvir sua voz onde ele a coloca, onde ele prometeu falar também a nós hoje. Voltemos às Escrituras, onde o Espírito Santo mesmo nos fala pelos profetas e apóstolos. Ouçamos com devoção a proclamação da palavra da reconciliação que vem da cruz e da ressurreição de Jesus. Reflitamos sobre o Batismo, fonte de vida, perdão e comunhão com Deus. Valorizemos a Santa Ceia, presente da graça do Pai para nos alimentar com sua doce voz de perdão, conforto e fortalecimento para a jornada!
Texto publicado no Mensageiro Luterano, na edição de maio de 2013.