A Páscoa na perspectiva de Isaías

Não existe, no Antigo Testamento, grande número de textos relacionados com a Páscoa, no sentido de festa da ressurreição de Cristo. Há até quem diga que o Antigo Testamento não ensina a ressurreição dos mortos, mas isso não é verdade. Você certamente lembra o Salmo 16.10: “Não permitirás que o teu Santo veja corrupção”. Podemos acrescentar Ezequiel 37 (“abrirei as sepulturas de vocês”), Oseias 6.1-3 (“ao terceiro dia, nos ressuscitará”) e Jó 19.25-27 (“eu sei que o meu Redentor vive”). O texto mais claro de todos é Daniel 12.1-3 (“muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão”).

Neste ano, no Domingo de Páscoa, o texto do Antigo Testamento que acompanha o anúncio da ressurreição de Cristo (em Mc 16) é Isaías 25.6-9. Isso leva a perguntar: De que forma Isaías é pregador da Páscoa? Acho que vale a pena buscar uma resposta na forma de um breve estudo do texto.

O texto de Isaías 25.6-9

[6] O SENHOR dos Exércitos dará neste monte um banquete para todos os povos. Será um banquete de carnes suculentas e vinhos envelhecidos: carnes suculentas com tutanos e vinhos envelhecidos bem-clarificados. [7] Neste monte ele acabará com o pano que cobre todos os povos e com o véu que está posto sobre todas as nações. [8] Tragará a morte para sempre, e, assim, o Senhor DEUS enxugará as lágrimas de todos os rostos, e tirará de toda a terra o vexame do seu povo, porque o SENHOR falou. [9] Naquele dia, se dirá: “Eis que este é o nosso Deus, em quem esperávamos, e ele nos salvará; este é o SENHOR, a quem aguardávamos; na sua salvação exultaremos e nos alegraremos”.

O texto foi copiado da Nova Almeida Atualizada, onde aparece o título: “Um banquete para todos os povos”. A julgar pelo título, parece não ter conexão mais direta com a Páscoa. Mas sugiro que, antes de prosseguir, você releia esse texto de Isaías 25 e veja se, de fato, não existem ali temas relacionados com a Páscoa. Deve haver pelo menos um ponto de contato.

Olhando para o rosto do texto

Olhar para o rosto do texto é dar atenção ao que está escrito. Isaías 25.6-9 tem a forma de um anúncio solene. O profeta fala a respeito daquilo que o SENHOR dos Exércitos (o SENHOR Todo-Poderoso) fará. No final do versículo 8 ele diz: “porque o SENHOR falou”. Aliás, além desses dois nomes para “nosso Deus” (v. 9), aparece também “Senhor DEUS” (v. 8). É um título estranho, que, em tradução bem literal do hebraico, seria: “Senhor SENHOR”. (O primeiro “senhor” traduz Adonay, que é um título; o segundo termo – DEUS, com letras maiúsculas – toma o lugar do nome pessoal de Deus no Antigo Testamento, às vezes transliterado como “Javé”, e que, em nossa Bíblia, normalmente aparece como um título: SENHOR.)

Os verbos estão no tempo futuro (“dará”, “tragará”, etc.), como seria de esperar num texto profético. Fala-se também sobre “aquele dia”, que é um dia futuro (v.9). O anúncio tem em vista um banquete para todos os povos. Note como esse tema da totalidade se repete: “todos os povos”, “todas as nações” (v.7), “todos os rostos” e “toda a terra” (v.8). O banquete terá carnes suculentas. Literalmente, “coisas gordurosas”. A gordura dos animais, queimada sobre o altar, era considerada a parte mais nobre. Fala-se também sobre vinhos envelhecidos.

Convém notar as várias repetições que aparecem: “carnes suculentas e vinhos envelhecidos; carnes suculentas com tutanos e vinhos envelhecidos bem-clarificados” (v.6); “o pano que cobre todos os povos, o véu que está posto sobre todas as nações” (v.7). Essas repetições são típicas da poesia hebraica. E o registro é importante, para que notemos o caráter poético desse texto. O profeta Isaías, que é o maior poeta do Antigo Testamento, pinta um quadro que, mesmo real, não iria necessariamente se cumprir ao pé da letra. Afinal, quanto vinho seria necessário num banquete oferecido para todos os povos? Como acomodar todos num só local? Fica claro, porém, que se tem em vista abundância e excelência. Carne gorda e vinho envelhecido: poderia haver algo melhor?

O local do banquete é “este monte”, que não é identificado. Normalmente pensa-se no monte Sião, embora alguém já tenha sugerido uma referência à terra de Israel como um todo. Importa o caráter localizado do banquete. A salvação que Deus providencia estende-se a todos, mas ela não se realiza de forma difusa, no Universo todo; ela ocorre num lugar específico, numa cruz e num túmulo aberto, com uma pessoa específica: Cristo.

O banquete se destina a todos os povos, mas, segundo o que é expresso com todas as letras, Deus é o único que come e bebe. O profeta anuncia que Deus “tragará a morte para sempre” (v.8). Tragar é engolir. Deus irá engolir a morte. No versículo 7, onde nossa tradução diz que Deus “acabará com o pano que cobre todos os povos”, o verbo traduzido por “acabar” é, literalmente, “engolir”. Deus engole o pano preto do luto e engole também a morte, que causa o luto. Mas, como isso é linguagem metafórica ou figurada, algumas traduções preferem o verbo “acabar”. Deus “acabará com a nuvem de tristeza e de choro que cobre todas as nações”, diz a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, no versículo 7. Esse pano que cobre os povos ou esse véu que está posto sobre todas as nações acompanha a humanidade desde Gênesis 3.19: “Você é pó, e ao pó voltará”. A morte, que já se empanturrou de filhos e filhas de Adão, mas que nunca se farta (Is 5.14; Hc 2.5), será engolida por Deus. Não haverá necessidade de um segundo gole ou novo banquete, porque a morte será tragada “para sempre”. Uma vez afastado o monstro, isto é, depois de ter “engolido” a morte, Deus como que se abaixa e enxuga as lágrimas de todos os rostos.

O ponto alto e momento esclarecedor do texto é o versículo 9, que traduz esse quadro para a linguagem da salvação e do louvor. Em tradução bem literal, o versículo 9 diz: “Eis o nosso Deus! Este é aquele que aguardávamos e ele nos salvou. Este é o SENHOR! Nós o aguardávamos. Vamos exultar e nos alegrar na sua salvação!”. Fique claro que “sua salvação” é a salvação que Deus dá (pois ele mesmo não necessita de salvação). “Deus é a nossa salvação”, diz o Salmo 68.19.

Verificando os pés do texto

Verificar os pés do texto é descrever a localização do texto. É tratar de diferentes contextos. Inicialmente o contexto literário. Isaías 25.6-9 é uma unidade completa, um texto com começo, meio e fim. No entanto, não é um trecho isolado. Faz parte de uma seção mais longa, que vai de Isaías 24 a Isaías 27. Antes disso, nos capítulos 13 a 23, aparecem sentenças ou profecias contra grande número de nações e cidades, com destaque para Babilônia, Assíria, Damasco, Etiópia, Egito, Arábia e Jerusalém. No capítulo 24, o título na Nova Almeida Atualizada nos lembra de que “O Senhor vai castigar o mundo”. Em Isaías 24.11 diz: “Gritam por vinho nas ruas; todo o riso desapareceu; a alegria foi banida da terra”. Fim de festa. E o que Deus fará agora? Ele poderia, se me permitem a figura, “espichar as pernas, sentado em seu trono, e celebrar a vitória sobre as nações com um bom cálice de vinho”. Mas eis a surpresa: Deus convida as nações para um banquete, oferecendo o melhor vinho do mundo! Depois de ter julgado as nações (lei), Deus estende a sua graça e o seu amor a todos os povos (evangelho).

Tendo olhado para os pés literários, ou seja, o lugar onde o texto se encontra no livro de Isaías, podemos dar atenção ao ambiente religioso. Uma nota na Bíblia de Estudo da Reforma registra que “na mitologia cananeia, os deuses destruíam a morte, mas a inimiga voltava com a mudança das estações”. Ou seja, os vizinhos do povo de Israel entendiam que a cada ano, com a chegada do outono e do inverno, o deus “Morte” retomava o poder, sendo derrotado outra vez na primavera. Num contexto desses, o anúncio de que Deus engoliria a morte “para sempre” deve ter causado um impacto e tanto!

Ampliando o horizonte dos contextos, para incluir o testemunho bíblico mais amplo, podemos dizer que esse anúncio de um banquete para todos os povos não é a primeira nem a última referência a uma “refeição com Deus”, na Bíblia. Deus é, num certo sentido, o “Deus dos banquetes”. (Isso contrasta com a visão de muitas pessoas, que pensam num Deus “carrancudo”.) No contexto da entrega da lei, em Êxodo 24.9-11, “Moisés, Arão, Nadabe, Abiú e setenta dos anciãos de Israel subiram o monte”. Já temos um monte, o monte Sinai, mas um grupo reduzido de homens. Esses “viram Deus, comeram e beberam”. Podemos dizer que, na entrega da lei, que Paulo chamaria de inauguração do “ministério da morte” (2Co 3.7), houve um pequeno banquete, mas que o banquete da vida, anunciado em Isaías 25, será extraordinariamente maior, na medida em que se destina a todos os povos.

No Novo Testamento, Jesus compara o reino do céu com um banquete, um sentar-se à mesa com Abraão, Isaque e Jacó (Mt 8.11). Ele também multiplicou os pães e peixes, no período da Páscoa (Jo 6.4). Foi um grande banquete, para milhares de pessoas. Mais adiante, Jesus instituiu a sua santa ceia, e, nesse contexto, falou sobre “aquele dia em que beberei com vocês o vinho novo, no Reino de meu Pai” (Mt 26.29). Enquanto esperamos o vinho novo, temos o privilégio de participar da antecipação (pequena, mas significativa) dessa festa, na santa ceia.

Isaías e a ressurreição de Jesus: a ponte para o Novo Testamento

Os textos do Antigo Testamento não podem vir diretamente ao nosso tempo. Não podem “descer de paraquedas” em nosso quintal; precisam passar pelo túnel que se chama Jesus Cristo. Em termos práticos, significa que Isaías 25.6-9 precisa vir até nós passando pelo Novo Testamento. E é por lá que o texto passa. Em 1Coríntios 15.54, Paulo cita Isaías 25.8: “Tragada foi a morte pela vitória”. Paulo afirma que isso ainda se cumprirá. Sob este aspecto, continuamos no mesmo lugar em que Isaías se encontrava, ou seja, ainda estamos no Antigo Testamento. No entanto, na medida em que Jesus é “primícias” ou o começo da colheita (1Co 15.23), a morte já começou a ser engolida. Celebramos isso na Páscoa. E, uma vez engolido o monstro, é hora de enxugar as lágrimas (Ap 7.17 e 21.4). As lágrimas ainda rolam, mas o dedo de Deus, no evangelho, já está em ação, secando o rosto dos que pranteiam. Nessa salvação exultamos e nos alegramos. E isso é Páscoa. Também na perspectiva de Isaías.

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