A imigração alemã e a estruturação do luteranismo no Brasil

A fé foi um elemento que sempre acompanhou os imigrantes, tanto para fazerem a viagem ao Brasil, como depois os fortaleceu em suas lutas

Eliseu Teichmann
Pastor da IELB em Londrina, PR
Mestre em Teologia e História

O cenário religioso

Há 200 anos chegaram os primeiros imigrantes de fala alemã ao Brasil, sendo a primeira leva instalada oficialmente onde hoje é São Leopoldo, RS. E os imigrantes alemães trouxeram a fé luterana. Dos primeiros 39 imigrantes, 33 eram evangélico-luteranos e 6 eram católicos. Embora posteriormente viessem também imigrantes de outros credos, a fé luterana foi largamente predominante ao longo de todo o processo de imigração. E assim, os imigrantes alemães deram origem ao luteranismo no Brasil, marcando tanto que até há poucas décadas a Igreja Luterana ainda era chamada de igreja dos alemães.

Em alguns momentos, a política imigratória previa separar os imigrantes por credo. Assim, foram constituídas colônias essencialmente luteranas e outras, católicas. Nos primeiros anos da imigração, por exemplo, na formação de núcleos no Litoral Norte do RS: no Mampituba, permaneceriam os católicos, pela proximidade com a Capela de Torres; no Três Forquilhas, ficariam os protestantes, que estavam acompanhados de um pastor. Mas também em fases posteriores, o credo foi um critério muitas vezes considerado: na região de Santa Rosa formaram-se linhas de população católica e linhas de população luterana.

Decorre que a relação luterana-católica tinha seus estranhamentos. A história nos traz relatos de conflitos entre grupos em virtude da religião. Vale mencionar um pormenor: havia um esforço por parte dos protestantes em se distinguir dos católicos em elementos litúrgicos, como o não uso do sinal da cruz e do não uso do crucifixo sobre o altar, mas da cruz vazia. Lembro que ainda na minha infância, em Candelária, RS, eu ouvia frequentemente o dito “das ist katholisch” (isto é católico), sobre fazer o sinal da cruz. E a mesma expressão era usada em situações em que alguma prática religiosa ou mesmo ideia e atitude eram consideradas estranhas.

Os luteranos realmente enfrentaram discriminação. As leis do Brasil Império não lhes davam o direito de exercerem plena e livremente a sua fé, sendo-lhes proibido ter locais de culto em formato de igreja; torres e sinos eram proibidos. Os ofícios religiosos do casamento não eram reconhecidos legalmente. Os cemitérios públicos eram apenas para sepultamento de católicos. No Brasil Colônia – 1500 até 1822 – estava proibida a presença de não católicos. No Período do Império, havia apenas tolerância aos não católicos. A liberdade religiosa plena aos não católicos veio somente a partir da proclamação da República, em 1889, e sua consolidação com a Constituição de 1891. No período das guerras mundiais, devido a suspeitas de ligação com a Alemanha nazista, a igreja sofreu restrições: documentos foram confiscados e alguns pastores até foram presos.

A fé foi um elemento que sempre acompanhou os imigrantes, tanto para fazerem a viagem ao Brasil, como depois os fortaleceu em suas lutas. Os imigrantes se preocuparam em manter a religião para que seus filhos também aprendessem o básico. Constituíram comunidades religiosas. Os recursos para a construção e manutenção da igreja eram levantados em meio às dificuldades financeiras. E na insuficiência de pastores e missionários estabeleceram pastores do seu próprio meio. Nessas condições, as atividades religiosas eram limitadas aos cultos e ritos costumeiros: batismo, confirmação, casamento, sepultamento. Critérios de pertencimento à igreja se davam por associação e pagamento de taxas. Os pastores eram vistos facilmente como meros empregados. Não havia preocupação missionária, pois também nem mesmo se conseguia atender adequadamente os já luteranos.

Os primórdios do luteranismo aqui se deram em meio a uma série de condições desfavoráveis, gerando características como: um apego ao patrimônio que os imigrantes e seus descendentes construíram; uma sustentação da autonomia e liberdade de decidir as questões referentes à igreja; uma oposição natural aos pastores muito rigorosos e a uma estrutura maior de igreja; uma busca para evitar maiores gastos com a igreja; e uma certa indiferença nas questões relativas à religião. Essas questões influenciaram no processo de estruturação do luteranismo em uma organização maior.

O caminho da institucionalização do luteranismo

Os primeiros pastores e missionários enviados pela igreja da Alemanha, a partir da segunda metade do século 19, consideravam caótica a situação da igreja evangélica luterana no Brasil.  Achavam que o estabelecimento de uma organização que reunisse as comunidades e uma ampla contratação de pastores formados dariam um rumo certo à mesma. Nesse sentido, em 1868, foi fundada a primeira organização sinodal – o Sínodo Teuto-Evangélico, sob a direção do pastor Hermann Borchard, chegado ao Brasil em 1864.

Essa primeira organização sinodal serviu para atrair comunidades que queriam uma assistência mais regular, com pastores melhor preparados. Entretanto, muitas medidas tomadas afastavam as comunidades ao invés de integrá-las. A filiação era condicionada à comunidade ter um pastor ordenado ou que tivesse solicitado um, com a aprovação do sínodo.  Também a estrutura interna da paróquia, a literatura a ser usada, algumas práticas e costumes seriam definidas pelo sínodo. Isso significava interferência na administração das comunidades, coisa a que não estavam acostumadas até aí. 

Outra das fortes razões que afastou muitas comunidades, pelas medidas tomadas pela direção sinodal, dificultando a estruturação mais efetiva da igreja evangélica luterana, foi o forte combate aos pastores livres, pois se fazia de tudo para afastá-los, não se admitindo o seu aproveitamento ou a sua integração.

A oposição à organização sinodal teve também a influência da imprensa teuta liberal, com ideias iluministas de anticlericalismo, de combate à religião e à autoridade. Nessa mesma linha contribuiu a presença de “Brummers” (soldados mercenários) nas colônias, que com a difusão de ideias materialistas influenciaram muitos a se oporem à igreja, aos pastores, ao ensino bíblico.  Mesmo entre os próprios pastores e missionários havia divergências quanto à organização sinodal, opondo-se muitos deles à sua existência e forma, e, assim, encaminharam suas comunidades para a mesma postura.

Como o primeiro Sínodo perdeu força já nos primeiros anos, em 1886, sob a liderança do pastor Wilhelm Rotermund, foi fundado o Sínodo Rio-Grandense, que igualmente sofreu as oposições externas que o primeiro sínodo, mas também porque repetiu várias de suas posturas, principalmente a exigência irrevogável de que a comunidade tivesse um pastor ordenado e aprovado pelo sínodo para que pudesse se filiar, e a ingerência na vida das comunidades em inúmeros aspectos. 

A indefinição confessional deste Sínodo fez com que alguns pastores e suas comunidades, que queriam uma linha declaradamente luterana, não se filiassem com suas comunidades. Além disso, também impediu maiores resultados para a integração das comunidades a não disponibilidade de recursos financeiros e humanos, por parte do Sínodo, para uma ação mais intensiva. Maior prejuízo nessa direção veio na época das guerras mundias, por causa da conjuntura de crise internacional e particularmente de perda de contato com as entidades eclesiásticas da Alemanha.

Mas, independente de tudo isso, em grande parte os serviços e recursos oferecidos pelo sínodo não eram tão bem acolhidos, porque os alemães e seus descendentes, dentro da liberdade que haviam conquistado com a vinda para cá – também no que diz respeito à igreja – temendo perdê-la novamente, hesitaram em se submeter a uma instituição maior com suas exigências. Não conseguiam vislumbrar vantagens suficientes para se integrar, antes, a filiação seria uma forma de assumirem obrigações e riscos desnecessários. Por fim, considerava-se o sínodo como uma organização que servia, principalmente, aos interesses dos pastores.

No caminho da estruturação eclesiástica da igreja evangélica luterana, soma-se, ainda, o trabalho do Sínodo de Missouri, dos Estados Unidos, que iniciou suas atividades aqui no Brasil em 1900, especialmente em meio à grande concentração das comunidades livres na região Sul do estado, servindo-se da estratégia da oferta de pastores formados e de recursos financeiros, dando combate tenaz aos pastores leigos, considerados responsáveis pela pobreza espiritual. Mas, ainda por várias décadas, nessa região, poucas comunidades aceitariam um pastor do sínodo e pediriam a sua filiação.

As razões da oposição foram identificadas e claramente expressas em alguns artigos.  Por exemplo, na revista Kirchenblatt, de 1938, sob o título “Gehört deine Gemeinde zur Synode’? (A tua comunidade pertence ao Sínodo?), o pastor Johann Fiedler aponta quatro causas básicas da resistência das comunidades em se integrarem aos sínodos. São elas:

1) Medo de perder a autonomia administrativa (Selbständigkeit) – pensava-se que, a partir da filiação, a comunidade não mais poderia chamar sozinha seus próprios pastores, mas deveria submeter-se à Comissão Missionária; 2) implicações nas práticas e costumes da comunidade – medo de que as comunidades não mais pudessem definir suas próprias práticas em torno do culto, batismo, santa ceia, etc; 3) medo de perder o patrimônio – de que com a filiação a comunidade deveria entregar suas propriedades ao sínodo; e 4) o possível ônus financeiro das comunidades com a contribuição ao sínodo.

Outros artigos da época reafirmam as mesmas causas na relação de oposição à filiação sinodal.  Mas também apontam um aspecto a mais em relação à filiação ao Missouri, isto é, a questão da etnia – descuido da germanidade.

Os sínodos não mediam esforços para dissuadir tais opiniões e ideias. Os apelos à integração centravam-se na necessidade de trabalho conjunto diante dos muitos desafios que existiam para a igreja.  Argumentava-se que a integração ao sínodo facilitaria a vida da própria comunidade, no que dizia respeito a conseguir pastores, literatura, fazer missão, no apoio às escolas paroquiais e na manutenção da doutrina.

É interessante ainda lembrar que nessa questão da estruturação e institucionalização do luteranismo, os sínodos travaram uma grande disputa pela filiação das comunidades. Já para as comunidades, dada a existência de mais de um sínodo, favorecia a possibilidade de integrar-se num ou noutro, o que foi feito, em muitos casos, de acordo com a conveniência imediata.

Em suma, o caminho da estruturação eclesiástica do luteranismo no Rio Grande do Sul esteve permeado de tensões entre uma elite clerical e a realidade que se apresentava nas comunidades, realidade que demandava, em muitos momentos, uma postura mais flexível para arregimentá-las em uma instituição maior. Já da parte das comunidades, a busca da liberdade, a autonomia e direitos de posses eram largamente requeridos.

O resultado: três igrejas formalmente instituídas

Característico da estruturação da Igreja Evangélica Luterana no Brasil foi a formação de comunidades originariamente autônomas. A maioria destas, diante das necessidades, com o tempo, cedeu à união numa instituição maior, conjugando esforços e aceitando normas comuns no ser igreja. Porém, esse processo de associação transcorreu lentamente, tanto que por todo o século 19 e na primeira metade do século 20, a maioria das comunidades não estava filiada a uma instituição sinodal. 

Ilustrativo do movimento de associação das comunidades a um Sínodo é o caso da Comunidade Cristo, de Candelária, RS. Ela foi fundada nos anos 1860, quando da chegada dos imigrantes alemães à região.  Até 1891, foi atendida por pastores ligados ao Sínodo Teuto-Evangélico e Rio-Grandense. Por divergências com orientações sinodais, a partir de 1891 seguiu como uma comunidade independente até os anos 1960, quando se filiou ao Sínodo Evangélico Brasileiro (IELB).

Na atualidade, raras são as comunidades autônomas ou que fazem parte de algum grupo menor de comunidade livres. A partir dos anos 1960, a integração das comunidades luteranas em um ou outro sínodo teve um aceleramento, e todo esse processo resultou no que hoje são as: Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e, mais recentemente, a Igreja Evangélica Luterana Independente (IELI). Enfim, as condições e os desafios desse processo de estruturação do luteranismo deixaram suas marcas no jeito de sermos igreja. Conhecer a história nos ajuda a compreender o presente e projetar o futuro.

BIBLIOGRAFIA

  1. TEICHMANN, Eliseu. As Comunidades livres no Contexto da Estruturação do Luteranismo no RS. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo, EST, 1996.

Acesse aqui a versão impressa.

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