A responsabilidade do voto

O mês de outubro tem uma agenda interessante para nós, cristãos luteranos. Vamos votar para eleger as principais autoridades políticas do país e festejar o Dia da Reforma. Nada mais oportuno, então, refletir nas atinadas ideias de Lutero, sobretudo quando a confusão política e religiosa da Idade Média está de volta no século 21. Lutero estava além do seu tempo medieval ao defender outras teses junto com as 95 daquele 31 de outubro, ou seja, os vários artigos sobre política. Numa terra onde o cristão é uma “ave rara”, nas palavras do reformador, um mundo constituído em sua maior parte por pessoas desregradas, injustas e insubmissas, se deixadas inteiramente livres ou sem qualquer controle, aniquilariam a paz e a ordem social. A partir desse conceito, Lutero defende a permanência do poder das autoridades, mesmo que elas não cumpram inteiramente a sua função, como ele percebeu no próprio contexto político. Assim, o Estado infectado pela corrupção é um mal menor diante da possibilidade do caos e da completa desordem. Tal compreensão de Lutero, sem dúvida, pode clarear nosso juízo quando o anarquismo ou a ideia de que política é coisa do diabo nos tentam diante de tanta decepção. Lutero argumenta que, piores do que as injustiças e as arbitrariedades praticadas pelos governos, eram a revolta e o questionamento ao poder político instituído por Deus. Tanto que, na ausência dele, apenas o mal e a destruição governariam.

Mas isto não é da cabeça de Lutero, está na Bíblia. “Porque não existe nenhuma autoridade sem a permissão de Deus” (Romanos 13.1), diz o texto sagrado. Interessante que esta declaração do apóstolo foi feita apesar da ditadura e opressão do Império Romano. Se hoje podemos escolher nossos governantes e legisladores sob um regime democrático, certamente estamos mais próximos à vontade daquele que “é Rei e governa todas as nações” (Salmo 22.28). A Bíblia fala dos direitos e deveres de um governo, mas não defende qualquer forma para elegê-lo, ou seja, por monarquia absoluta ou limitada, oligarquia, democracia ou outra configuração. No entanto, a democracia tem um jeito parecido com o jeito do Deus da Bíblia, que sempre concedeu liberdade de escolhas com responsabilidades, direitos e deveres.

Na compreensão deste princípio bíblico, de que a instituição do poder político é algo divino, percebe-se o significado das urnas e do nosso compromisso de cidadão neste mês da Reforma Luterana: o voto é divino. Por tabela, Deus escolhe pessoas por nossas mãos. Se existe fraude nas eleições, se os governos são corruptos, isto fica na conta deles e um dia terão que prestar contas ao Criador. Por isso, longe de nós usarmos indevidamente o poder do voto, vendendo-o ou negociando-o. Além de crime eleitoral, agride a vontade de Deus. Temos o dever de votar bem, escolhendo pessoas comprometidas com os propósitos dos seus cargos. E se somos candidatos ou pessoas eleitas a cargos políticos, o compromisso é bem maior. Não foi por nada que Paulo, depois de dizer que somos cidadãos (polithes, no grego) dos céus, recomendou: Sejam filhos de Deus, sem culpas, vivendo num mundo de gente pecadora e perdida. No meio dessa gente vocês devem brilhar como as estrelas do céu, entregando a eles a mensagem da vida” (Fp 2.15,16). Um pouco antes já tinha dito: “Vivam de acordo com o evangelho de Cristo” (1.27). “Vivam”, aqui, é precisamente politeuesthe, e numa versão mais adequada do texto, seria: “sejam bons cidadãos e políticos neste mundo de acordo com a fé”. Diz isto para sublinhar que o cristão tem duas cidadanias, a terrena e a celestial, uma dupla responsabilidade afirmada nas palavras do próprio Cristo: deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Diante disto, com a devida distinção de Igreja e Estado, cabe aos cristãos interesse e comprometimento em questões políticas não só hora do voto. Pois somente um país bem governado pode oferecer condições favoráveis para o grande propósito divino, “que todos sejam salvos e venham a conhecer a verdade” (1Timóteo 2.4). A injustiça, a fome, a guerra, a ignorância, a desobediência, a imoralidade, a violência, enfim, o caos numa sociedade, além de desagradar a Deus, dificulta a sublime tarefa da Igreja Cristã de “preparar o povo de Deus para o serviço cristão, a fim de construir o corpo de Cristo” (Efésios 4.12). Não é por nada que o apóstolo recomenda: “Orem pelos reis e por todos os que têm autoridade, para que possamos viver uma vida calma e pacífica, com todo o respeito a Deus e agindo corretamente” (1Tm 2.2). Neste momento, a recomendação é outra: “Orem pelos eleitores para que possam escolher bons governantes”.

Material publicado na revista Mensageiro Luterano em outubro de 2014. Acesse aqui.

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